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Mário Campos Filho

Presidente da Bioenergia Brasil e da Siamig Bioenegia

OpAA85

A conturbada relação Brasil e Estados Unidos e os reflexos para o setor de bioenergia
No último mês de janeiro, o presidente Donald Trump assumiu seu segundo mandato à frente da maior economia e uma das maiores democracias do mundo. Como prometido em sua campanha eleitoral, ele anunciou uma mudança radical na política comercial americana e elevou o nível de risco na economia mundial.

Em abril, o governo americano anunciou o aumento das tarifas de importação para diversos países, dentre eles o Brasil, que ficou com a menor tarifa, cerca de 10%. Após um período de ansiedade e de certa apreensão, governo e setor privado se viram bem-posicionados frente aos nossos concorrentes.
 
Em julho, o presidente Trump anunciou a adoção, a partir de 1º de agosto, de uma nova tarifa extra de 50% sobre todas as importações originadas do Brasil. A medida caiu como uma bomba sobre o setor econômico brasileiro, pois os Estados Unidos são o segundo parceiro do Brasil com um fluxo de comércio internacional de mais de US$ 80 bilhões por ano, apresentando, inclusive, superávits consecutivos nos últimos anos. A carta enviada ao Brasil apresentava poucas diferenças das mais de duas dezenas enviadas a outros países no mesmo período.

Além de citar as questões envolvendo o processo judicial do ex-presidente Bolsonaro, a carta também citava os processos judiciais relativos às plataformas de mídias sociais, de total interesse das chamadas big techs americanas. 

O Brasil possui uma cesta extensa de produtos exportados aos Estados Unidos que vai de mel, produzido por produtores do Piauí, aos tecnológicos aviões da Embraer, produzidos em São Paulo. Dentre as commodities exportadas, destacam-se o café, o suco de laranja, a carne bovina, além do açúcar e do etanol.

A carta de Trump anunciava, igualmente, o início de uma investigação pelo Departamento de Representação Comercial dos Estados Unidos (USTR na sigla em inglês) da seção 301, baseada na lei de comércio americana de 1974. Uma semana após o anúncio de Trump, o Brasil conhecia os seis tópicos da investigação da seção 301, onde o etanol mereceu destaque, juntamente com um capítulo relacionado ao desmatamento. 
 
Apesar de apresentar superávit comercial com o Brasil relativo à balança comercial geral, a balança comercial no setor do agro apresenta um superávit brasileiro de cerca de US$ 9 bilhões. De acordo com o documento divulgado, que pode servir de embasamento técnico para a imposição da tarifa prometida, o Brasil, em especial o setor de pecuária e produção de soja, seria beneficiado por explorar extensas áreas desmatadas que, segundo eles, prejudicaria os pecuaristas e agricultores americanos.

Brasil e Estados Unidos são grandes players globais do agronegócio com grandes mercados internos e concorrem em diversas áreas por comércios ao redor do mundo. No setor de etanol não é diferente, onde os dois países juntos possuem 80% da produção mundial desse biocombustível.

Os americanos, maiores produtores do mundo, produzem mais de 60 bilhões de litros, enquanto o Brasil alcançou, na última safra, expressivos 37 bilhões de litros. Com uso prioritariamente carburante, o Brasil já substitui mais de 45% da gasolina, enquanto nos Estados Unidos, o nível de substituição ainda se encontra próximo de 10%, apesar das inciativas de implementação do E15 e do E85.

Já há alguns anos, os americanos, em função do pouco crescimento do seu mercado interno, apresentam excedentes exportáveis expressivos. Atualmente, os Estados Unidos precisam exportar cerca de 7,2 bilhões de litros e veem o Brasil como um cliente potencial para receber esse produto. Brasil e Estados Unidos têm um longo histórico no etanol, com a apresentação de grandes fluxos comerciais entre os dois países, principalmente depois de 2010. 

Contudo, após um grande surto de importação em 2017 e 2018, o Brasil chegou a importar mais de 1,5 bilhões de litros anuais e decidiu elevar a alíquota do etanol. Depois de alguns períodos com cota volumétrica sem tarifa e um curto período em 2022 com alíquota zero, a atual taxa estabelece um imposto de importação de 18% para entrada de etanol no Brasil. 
 
Enquanto isso, os Estados Unidos, que passaram mais de 30 anos com forte proteção ao mercado interno de etanol, resolveram em 2012 eliminar uma tarifa adicional de US$ 0,54 por galão, mantendo a alíquota de 2,5%, majorada em abril para 12,5%. Confirmada a alíquota adicional de 50% a partir de 1º de agosto, o imposto de importação americano inviabilizaria qualquer exportação brasileira para aquele país.

No mercado de biocombustível mundial, o debate de emissões é muito importante. Independentemente da fonte da matéria-prima e do processo produtivo, na essência, qualquer etanol apresenta algum nível de redução de emissões quando comparado à gasolina. Mas, quando se compara o etanol produzido no Brasil com o etanol produzido nos Estados Unidos, independentemente da metodologia, o etanol brasileiro apresenta sempre menor pegada de carbono, o que colocaria o Brasil em vantagem competitiva.

Ocorre que o mercado mundial de etanol está sendo dominado pelos americanos, que estão "baixando a régua" das necessidades de reduções de emissões dos programas nacionais de carbono no setor de transporte, e têm usado do momento atual da sua nova política comercial para fechar grandes acordos pelo mundo. 
 
Foi assim no Reino Unido, onde conseguiram isenção total para a exportação de etanol, e no Vietnã, onde conseguiram reduzir a tarifa de 10% para 5%. Mais recentemente, os Estados Unidos anunciaram acordos com o Japão e com a Indonésia, incluindo etanol e o DDG (do inglês Dried Distillers Grains), na cesta de produtos com algum tipo de benefício.

O desejo americano não é diferente no Brasil. Há anos eles apresentam o pleito ao governo brasileiro. Uma abertura do mercado brasileiro ao etanol americano poderia representar uma importação acima de 1,2 bilhão de litros por ano, podendo chegar a 1,5 bilhão. Pelo histórico da entrada de etanol no Brasil, estima-se que o maior volume ocorria nos portos do Nordeste, o que poderia causar sérios problemas ao setor produtivo da região, pois um volume desse tamanho representaria cerca de 40% do consumo total de etanol da região. Se, há alguns anos, o impacto seria grande, atualmente estima-se um impacto ainda maior. 
 
A geografia da produção de etanol tem apresentado grandes mudanças, principalmente com o crescimento no Brasil da produção de etanol de milho. Essa produção já elevou o Centro-Oeste brasileiro à liderança na produção de etanol no País. Recentemente, essa expansão chegou ao Nordeste e já chegará à região Sul em breve.

A entrada do produto americano representaria uma forte pressão sobre a queda de preços em um ano com tendência de valores menos remuneradores, impactados pela redução dos preços de petróleo e da gasolina. O mercado brasileiro está bem abastecido com a produção doméstica sem a necessidade de excedentes externos. 
 
Assim, é importante a manutenção da alíquota de 18% como forma de proteção do mercado brasileiro contra surtos de importações de etanol americano, como o ocorrido em 2017 e 2018. No debate sobre o comércio exterior envolvendo o setor de bioenergia e açúcar, não se pode olhar o etanol de forma isolada, sendo também necessário observar o mercado de açúcar, produtos complementares no sistema cana, ainda dominante no Brasil. Nesse quesito, Brasil e Estados Unidos têm grandes diferenças. 
 
Os brasileiros são os maiores produtores e exportadores do produto do mundo, enquanto os americanos apresentam produção relevante, mas insuficiente para a demanda doméstica, dependendo anualmente de importações. O Brasil exportou, nos últimos anos, mais de 30 milhões de toneladas de açúcar de cana e possui forte capacidade competitiva nesse mercado.
 
Os americanos, que produzem açúcar de cana e de beterraba, têm forte proteção do mercado interno, impondo uma alta tarifa de importação, acima de US$ 350 por tonelada, com um sistema de cotas preferenciais que ditam a dinâmica dessa importação. Em geral, a população americana e a indústria daquele país pagam mais que o dobro do preço que o mercado mundial negocia, uma forma de proteção à falta de competitividade da produção local.

Assim, como os americanos têm interesse no mercado brasileiro de etanol, o Brasil tem muito interesse no mercado americano de açúcar. Os Estados Unidos importam, anualmente, mais de 3 milhões de toneladas de açúcar, e o Brasil participa de forma tímida desse mercado. 

Por exemplo, na cota preferencial que totaliza 1,3 milhão de toneladas anuais, o Brasil participa com apenas 155 mil toneladas, muito pouco para a dimensão brasileira no mercado mundial do produto. Por lei brasileira, essa cota é direcionada às usinas produtoras do Nordeste/Norte do País, a mesma região que seria a mais prejudicada pela entrada de etanol no País. 

O Brasil também participava de outra cota, esta mundial e direcionada aos açúcares especiais, especificamente o açúcar orgânico. Com um total médio de 210 mil toneladas anuais, o Brasil conseguia performar cerca de 50% do total dessa cota, contudo em julho os americanos anunciaram o fim dela. Com a imposição da tarifa extra de 50%, o Brasil será muito provavelmente excluído desse mercado.

É um momento muito delicado e de grandes incertezas, principalmente por envolver negociações altamente dependentes de acordos entre governos, que não pensam o mundo da mesma forma. O Brasil não é o único alvo. Muitos outros países passaram ou estão passando pelo mesmo processo frente à nova política de comércio exterior americana. 

A negociação, caso exista, exigirá muita articulação, e a complexidade do exemplo do setor de bioenergia e açúcar só demonstra a dificuldade de se chegar a um bom acordo para os dois lados. Contudo, Brasil e Estados Unidos, como potências da bioenergia, em especial dos biocombustíveis, têm uma grande agenda comum pelo mundo na área da transição energética, não só defendendo novos mandatos de etanol na gasolina, mas sobretudo inserindo o etanol nas rotas de descarbonização e produção de combustíveis para a aviação e navegação marítima.