Simplismo, ignorância e criminalização dominam as análises do desmatamento na Amazônia. Jornalistas e tudólogos, até do agronegócio, são capazes de opinar sobre pecuária, Ucrânia, mercado de carbono, El Niño, COP30, eleições norte-americanas, florestas energéticas e, é claro, desmatamento. E só o veem num retrato em branco e preto: é legal ou ilegal. Reduzem o desafio da ocupação secular e do complexo uso das terras na Amazônia a uma questão policial. Ignoram a falta de regularização fundiária, o sistema de ilegalização de produtores e do desmatamento, e o eugenismo ambiental em curso na Amazônia.
O Brasil mapeia anualmente o desmatamento na Amazônia há quase 40 anos, com o Programa PRODES do INPE. Os números são analisados pela mídia, opinião pública e Governo como uma cotação na Bolsa de Valores: subiu, desceu, acelerou, diminuiu. Antes de condenar ou justificar, é preciso compreender, qualificar e dar resposta a perguntas, raramente formuladas.
Quantos desmatamentos ocorrem por ano na Amazônia? Se houve um desmatamento total de 12.000 km2, por exemplo, ele resultou da soma de 100 áreas desmatadas de 1.200 km2? Ou de 10.000 áreas desmatadas de 12 km2? Quantos desmates por ano? A Embrapa Territorial, por geoprocessamento, quantificou. São cerca entre 30.000 e 32.000 desmates por ano. Deles, cerca de 10%, em terras indígenas, obras de infraestrutura, expansão urbana, mineração... Menos de 30.000 desmates por ano no mundo rural.
Quem os realiza? O produtor rural na Amazônia não se assemelha aos do Sul, Sudeste ou Nordeste. A complexidade do mundo rural amazônico combina: atividades sem base na terra, ligadas a territórios (apicultura, pesca, caça...); extrativismos vegetais; grupos humanos, etnias e comunidades em áreas consolidadas (indígenas, descendentes de japoneses, colonos, sulistas, nordestinos...); mais de meio milhão de famílias em assentamentos agrários; agricultores periurbanos e áreas entre as mais produtivas e modernas da agropecuária nacional. Nada comparável em outros biomas.
A Embrapa Territorial quantificou os produtores rurais no bioma Amazônia ao integrar o Censo Agropecuário do IBGE, o Cadastro Ambiental Rural e informações do INCRA. Existe mais de um milhão de produtores rurais lato sensu no bioma Amazônia. Pará e Rondônia, com 407.341 e 157.705 produtores, reúnem 56,1% do total.
Deles, mais de 89% são pequenos, com áreas inferiores a quatro módulos fiscais. Quantos agricultores desmatam? São menos de 30.000 desmates anuais e mais de um milhão de produtores. Se cada desmate fosse obra de um produtor diferente, menos de 3% dos produtores estariam anualmente envolvidos e 97% não participariam. E acusações ambientalistas são contra toda a agropecuária e todos os agricultores. Desmatamento não é a marca da agricultura na Amazônia e sim sua demanda por regularização fundiária, a mãe de todas as batalhas econômicas, sociais e ambientais.
Quantos desses desmatamentos seriam ilegais? Nos limites impostos pelo Código Florestal Brasileiro, um dos mais rigorosos do planeta, um máximo de 20% do imóvel pode ser aberto no bioma Amazônia. Os outros 80% devem ser preservados, como Reserva Legal. Desmatamento “legal” não é sinônimo de “autorizado”. Nos 2.406 projetos de reforma agrária no bioma Amazônia, as 509.907 famílias assentadas praticamente nunca puderam obter autorização para desmatar.
Como solicitar autorização de desmate sem o título da terra? Assentados há décadas, eles não receberam o título de propriedade, apesar da urgência e necessidade dessa regularização fundiária. Os produtores da Amazônia têm direito legal de desmatar, seguindo Código Florestal, e não podem exercê-lo, nos termos e regras da administração. Seus desmates, necessários para viver e sobreviver, são irregulares e não ilegais. E prosseguirão.
O acesso à regularidade administrativa, a autorização de desmatamento, é negado ao produtor. A área ambiental governamental, desde a Constituinte, parece trabalhar pela ilegalização do desmatamento e dos produtores rurais amazônicos. É uma forma de desantropizar a região, expulsar produtores das terras, realizar a eugenia ambiental e congelar a economia da região, sonho de muitas Organizações Não Governamentais (ONGs) e governos estrangeiros.
Mesmo com o título de propriedade, onde, como e a quem o produtor deve solicitar a autorização? Um pequeno agricultor de Machadinho d´Oeste deveria sair de seu lote e percorrer 400 km, até Porto Velho, para solicitar? Ou sair de Oriximiná (AM) e navegar centenas de quilômetros até Manaus? E lá, onde e a quem se dirigir? Com qual documentação?
Não há qualquer esforço para regularizar e municipalizar autorizações de desmatamentos legítimos. Não há desburocratização para desmatar. Não há uma ficha a ser preenchida, orientações ou procedimentos na Internet, como em outros direitos exercidos por um cidadão. Ninguém viu qualquer folheto ou cartilha orientar como obter uma autorização de desmate. Não é assunto da extensão rural. Não há qualquer facilidade para isso. Caso o produtor consiga a proeza da solicitação, como acompanhará e fará valer seu direito, ao retornar às suas terras onde não há sequer eletricidade?
Médios e grandes produtores, com devida documentação, conseguem solicitar a autorização de desmate. Ficam meses e anos sem resposta. Com o protocolo e sem autorização para exercer seu direito. Limbo. Sem sim, nem não. Pior. Às vezes, a área técnica aprova. A autoridade não assina, por medo do ataque da mídia e ONGs ambientalistas, como se crime hediondo fosse.
Há conhecimentos para promover a regularização fundiária, tecnificar os sistemas produtivos e reduzir a demanda por terras? Sim. E nada servem a quem deseja apenas criminalizar e ilegalizar o desmatamento. Toda ilegalidade deve ser combatida e não confundida com irregularidade ou negação de legitimidade. Assentamentos agrários são um exemplo do processo da ilegalização do desmatamento. Há outros.
No exterior, o Parlamento Europeu foi além. Em nova legislação, a Europa estabeleceu restrições e sanções a produtos agrícolas importados, oriundos de áreas recentemente desmatadas. Pouco importa se legal ou ilegalmente. Para os interesses europeus, desmatamento legal ou ilegal é igual. Esse debate, acentuado por alguns no Brasil, objeto deste artigo, para eles é irrelevante.
Apesar das ações policiais, ditas de comando e controle ambiental, centenas de milhares de pequenos agricultores seguirão re-existindo na Amazônia, com sonhos familiares, trabalho e pequenos desmatamentos para estabelecer roças de mandioca, milho, arroz, feijão, café, frutas, pastos e agrofloresta.
No Amazonas, um produtor entristecido relatou uma conversa com seu filho. Para o jovem, existem duas atividades criminosas na Amazônia: narcotráfico e agricultura. Só contra a agropecuária, a repressão é enorme (polícias, viaturas, helicópteros, ministério público, ONGs, agentes ambientais, drones, satélites etc.). Ele optou pelo narcotráfico, cujos líderes gozam até de acesso livre às mais altas autoridades da ré-pública.
Legal, ilegal, irregular ou legítimo?