Quando pensamos na pauta central desta publicação - "Os rumos do sistema bioenergético" - o que vem à mente é o título acima, literalmente, uma vez que há uma real possibilidade do uso de biocombustíveis na aviação, com o SAF (sustainable aviation fuels).
Esta seria uma consequência lógica de uma longa história, que começou em novembro de 1975 com a criação do Programa Nacional do Álcool, o Proálcool, legislação governamental nascida com o propósito de se buscar uma alternativa viável à crise do petróleo, caracterizada pelo aumento repentino e exagerado dos preços dos combustíveis fósseis.
Nesses 50 anos de existência, o Programa passou por fases difíceis e, em alguns momentos, quase perdeu a razão de ser. Mas, com o tempo, foi se firmando para além das fronteiras brasileiras e hoje se insere num capítulo muito significativo das grandes questões a serem enfrentadas pela humanidade.
Com efeito, há 4 grandes fantasmas assombrando cidadãos de todos os continentes, os "modernos cavaleiros do apocalipse": insegurança alimentar, transição energética, mudanças climáticas e desigualdade social. São temas que afetam o mundo todo e que precisam ser enfrentados com vigor, porque, não resolvidos, constituem verdadeira ameaça à paz universal e à democracia em cada país. A fome, principalmente, não convive com a paz, e a história é prenhe de demonstrações desse fato.
Já a transição energética, caracterizada pela necessidade de matriz renovável que substitua matérias-primas fósseis, tem um caminho evidente com a bioenergia, os biocombustíveis e seus subprodutos, e a experiência brasileira prova essa tese. O nascimento do Proálcool coincidiu com um período em que o Brasil importava alimentos.
Em 1970, importávamos 30% do que era consumido no Brasil. Foi esse o gatilho para a criação da Embrapa em 1973, com a visão de alcançar a autossuficiência alimentar. A agricultura era costeira, e o governo lançou programas visando a incorporação do Cerrado, especialmente no Centro-Oeste, às áreas produtivas: o Polocentro e o Prodecer são desse tempo.
Por isso, surgiram críticas pesadas ao Proálcool. Lideranças acadêmicas acusavam o programa de privilegiar a produção de combustíveis em vez de alimentos: diziam que ia sobrar cana e faltar comida. A própria Petrobras não era muito simpática à ideia, e a indústria automobilística não teve entusiasmo maior.
O tempo mostrou o erro dessa avaliação. As plantações de cana-de-açúcar se expandiram para áreas de pastagem extensiva no Oeste e Noroeste de São Paulo e também nos estados vizinhos. E, ao ocuparem essas regiões, levaram gestão e tecnologias ainda não praticadas pelos pecuaristas locais. Isso promoveu a mecanização acelerada dos produtores, que passaram a reformar e modernizar pastagens via agricultura de grãos, em especial o milho e a soja, que vinha com força do Sul e se adaptava a regiões tropicais ou subtropicais.
O resultado foi espetacular, e o crescimento da agricultura de alimentos garantiu a autossuficiência ambicionada e permitiu as exportações ao mundo todo, desmentindo o medo apregoado por inimigos do Programa. Mesmo assim, o setor sofreu pressões eventuais, até durante alguns governos federais, e resistiu bravamente até dois fatos surgirem em seu favor.
O primeiro, importantíssimo, foi a cogeração de eletricidade a partir da queima do bagaço de cana nas caldeiras das usinas. A tecnologia industrial avançou reduzindo a demanda por lenha nas caldeiras e sobrou muito bagaço, que virou energia distribuída nas redes oficiais, exatamente no inverno, quando as represas eram mais baixas e as hidrelétricas sofriam para atender à demanda do país que se urbanizava e se industrializava.
E o segundo foi o nascimento do carro flex, quando a indústria automobilística se "casou" com o álcool, então apelidado de etanol.
Daí para a frente, as coisas foram mais simples e os avanços notáveis. A partir de 2006, os Estados Unidos iniciaram a produção de álcool de milho, que parecia inadequado. Mas com muita pesquisa, inovação tecnológica, determinação e muito subsídio, a coisa funcionou a tal ponto que os Estados Unidos se tornaram o maior produtor mundial.
Os empresários brasileiros não ficaram para trás e logo iniciaram programa igual, com uma vantagem sobre o etanol de cana: um subproduto da fabricação, o DDG, um farelo riquíssimo em proteína, passou a ser super relevante para a produção de carne e leite, de modo que o álcool de milho, além de servir como combustível renovável, era também ótimo para a alimentação animal e humana.
O mesmo se deu com o biodiesel, criado por lei em 2005, especialmente o fabricado a partir da soja, porque o farelo da oleaginosa, subproduto da produção, também tem grande valor para rações. Mais recentemente, o restilo, resíduo da destilação do caldo de cana, está produzindo biometano, um gás que ajuda a eletrificação e ainda gera um fertilizante orgânico que volta aos canaviais.
Todo esse gigantesco aparato é o verdadeiro algoz dos afamados "cavaleiros do apocalipse". Fornece o alicerce para a nossa matriz energética, que é 50% renovável, enquanto a do mundo não chega a 15%. E contribui efetivamente para mitigar as mudanças climáticas. O etanol emite 11% do CO2 emitido pela gasolina. E o biodiesel emite só 20% do CO2 equivalente do diesel fóssil.
Com isso, a bioenergia mata 3 coelhos (ou 3 cavaleiros fantasmas) com uma só cajadada: é a base de uma transição energética ambicionada, mitiga as mudanças climáticas e ainda gera milhares de empregos nas cadeias produtivas da cana, do milho e das oleaginosas em todo o país, ajudando a resolver o drama da desigualdade social. E o quarto, a segurança alimentar, é minimizado com o farelo de soja e o DDG do milho.
Adicionalmente, os biocombustíveis melhoram muito a saúde pública nos centros urbanos, e este é um ponto essencial para o bem-estar da sociedade. E tudo isso pode ser replicado nos países do cinturão tropical do Planeta na América Latina, África subsaariana e Ásia. Desde sua criação, o Proálcool produziu 813,4 bilhões de litros, reduzindo drasticamente as emissões de CO2. Só em 2004 foram evitadas 48,6 milhões de toneladas!
Desde 2011, o etanol evitou a importação de 305 bilhões de litros de gasolina, que custaria, a valores presentes, 195 bilhões de dólares. Economia gigante! Em 2024, foram produzidos 35,9 bilhões de litros, sendo 29,6 a partir da cana e 6,3 a partir do milho. São 357 unidades industriais em funcionamento em todo o Brasil, sendo 335 usando a cana como matéria-prima, 11 usando o milho e outras 11 usando ambos. Os empregos diretos e indiretos gerados pela cadeia produtiva chegam a 2,2 milhões. Segundo a Unica, que informou esses dados, a produção de etanol pode chegar a 48 bilhões de litros até 2034. Atualmente, 27% de etanol anidro são misturados à gasolina, e essa proporção pode ir a 30% até 2030, segundo a Lei Combustível do Futuro.
Desde 2005, quando foi lançado o biodiesel, foram produzidos 76,7 bilhões de litros, evitando a emissão de 4,9 milhões de toneladas de CO2 e economizando 43,8 bilhões de dólares na importação de diesel fóssil. Cerca de 58 instalações industriais produzem biodiesel, a maioria a partir de soja, mas também se usa sebo bovino e óleo usado de cozinha e cresce a perspectiva de uso de óleo de palma e macaúba. Atualmente, se mistura 14% de biodiesel no combustível fóssil, podendo chegar a 20% até 2030, de acordo com a Lei Combustível do Futuro.
Por tudo isso, e dadas as perspectivas do SAF, o céu é mesmo o limite para os biocombustíveis, mormente com a nova legislação aprovada no ano passado, que cria previsibilidade até ao seu uso na aviação. Mas nada impede que seja também o combustível do futuro na navegação. Aí sim, o Brasil terá ensinado ao mundo que os biocombustíveis são excelentes alternativas na terra, no ar e no mar.