Especialista no setor sucroenergético
Op-AA-34
Há muito o setor sucroalcooleiro não via crise tão séria como a de hoje. Talvez a dos anos 1970, que originou o Planalsucar, o mais importante programa de melhoramento genético da cana-de-açúcar do mundo. Ou as crises do petróleo, em 1973 e 1979/82, detonadoras dos Proálcool I e II, pioneiros ao proporcionar e incentivar um uso massivo de biocombustível no globo. Ou a dos anos 1990, cujo resultado foi a transformação do Brasil no maior exportador mundial de açúcar.
Ou, ainda, a crise do final dos anos 1990, início dos 2000, deslanchando um mundo novo para o biocombustível originário da cana-de-açúcar, com base nos motores flex-fuel. Como dizem os chineses, as crises são criadoras de oportunidades. Oxalá seja verdade neste caso. Quais os fundamentos da crise atual? Ela nasce na cola da euforia dos meados dos anos 2000, quando assistimos à implantação de 120 novas unidades produtoras e a uma expansão da produção de 300 milhões de toneladas de cana.
Nem todos os projetos tinham perfis financeiros adequados aos prazos e taxas de retorno ali previstos. Com a recessão de 2008, interrompem-se os financiamentos esperados. Em alguns casos, faltaram experiência e conhecimento. Houve forte acúmulo da demanda por equipamentos e mão de obra, encarecendo os investimentos. Em vários momentos, os preços de açúcar e etanol estiveram abaixo dos custos de produção.
Uma série de incertezas, sobre as quais procuro refletir, existiu em algumas das fronteiras agrícolas: que variedades plantar, sem os testes adequados de adaptação às peculiaridades locais; como prosseguir na indispensável mecanizaçãoda colheita, sem experiências testadas que minorassem a forte queda da produtividade agrícola; como encontrar os parceiros indispensáveis, etc. Destaco, entre todas, uma razão preponderante. A indústria perdeu a capacidade de dialogar com o poder público. Olhando o passado, a saída das crises para novos patamares de produção e inovações ocorreu com intenso debate e interação com o governo.
Há claríssimas evidências do quanto as políticas públicas para o desenvolvimento dessas atividades foram fundamentais. Hoje, mais ainda. Como importante produtor de combustível líquido e gerador de energia elétrica, o setor é parte umbilical da matriz energética brasileira.
E, como tal, tem responsabilidades fundamentais e definitivas em seu fornecimento. Reside aí o primeiro e mais claro desentendimento com o governo. Tenho assistido, de ambos os lados do muro, a essa “conversa” de torre de Babel. No passado, muitos dos produtores chegaram mesmo a defender o fim da produção de álcool hidratado, para escapar de sua obrigação em abastecer o mercado. Esse foi um dos grandes divisores d´água, que resultou em forte e conflituosa desunião entre todos.
Felizmente, isso é história. Mas o caso aponta para o maior problema da representação empresarial hoje: a forte e positiva mudança em sua estrutura produtiva. Até ontem, havia uma identidade: todos eram produtores, em organizações familiares, de etanol e de açúcar. Uns maiores que outros, alguns mais capitalizados que outros, mas todos guardando, ainda, em seus baús, os ternos de linho branco, usineiros que todos eram.
Vencidas as diferenças, era possível associarem-se ao mesmo clube, como, por exemplo, em destilarias autônomas (Sopral) e usinas de açúcar e álcool (AIAA), na nova, então, Unica, e assim assumirem posturas comuns. Foi a época do amplo diálogo. De um lado, os produtores, com voz e ação comuns. De outro, um governo ávido por novos projetos, vendo na indústria importante vetor de desenvolvimento lato sensu.
Época de conquistas: o novo motor flex-fuel e sua notável expansão; o fim dos subsídios à exportação do açúcar europeu; o sonho de novos mercados: o Japão, a China, os Estados Unidos e o fim de suas tarifas sobre o etanol; a importante presença do BNDES e a expansão do setor. Linguagem comum, interesses comuns, ações comuns. Coisas nunca antes vistas neste País...
Novos e importantes atores; grande consolidação do setor; interesses crescentemente difusos. E um novo estilo em governar. Presença muito mais incisiva do poder público.
Pode o empresário visar ao lucro necessário para sair do imobilismo e enfrentar riscos percebidos por ele como crescentes? Entende o governo que o nível de remuneração do empresário se dá pela concorrência e não depende de um ato de sua vontade? Dificuldades institucionais aparentes, como o problema das propriedades em mãos de estrangeiros, ou das prolongadas discussões sobre o Código Florestal, ou as mudanças nas regras dos leilões de energia alternativa, ou do novo e importante papel da regulamentação da atividade de produção e distribuição de combustíveis.
O que dizer da mais absurda e frustrante política de preços de combustíveis, que, além de arrasar o setor, cria dificuldades crescentes para os indispensáveis investimentos da Petrobrás? E o setor segue tentando reencontrar, sem sucesso, um caminho para o indispensável diálogo com o poder público.
Quais os pontos comuns dentro da indústria? Quais os que não batem de frente nos crescentes conflitos internos da produção, da distribuição, da comercialização e de sua representação política? Como refundar o clube, como reconstruir a plataforma única, uma vez que o velho já era?
A grande questão e o grande drama ultrapassam, em muito, os interesses daqueles diretamente envolvidos. Uns perderão anéis. Outros, seus dedos. Outros, ainda, verão frustrados seus devaneios de riqueza e poder. Tudo bem: como dizia Keynes, no longo prazo, todos estaremos mortos. Mas o grande frustrado, o grande ofendido por essa inaceitável incapacidade dos diferentes atores em dialogar e encontrar os caminhos comuns do benefício maior é o povo, é a nação brasileira. Que vê, nessa paralisia, nesse impasse, nessa absurda queda de braço, o fim do sonho no qual realizaríamos o enorme potencial que nossa natureza e nossa ingenuidade conceberam lá atrás e que, certamente, seria nosso passaporte – digo: de todos nós – para o próspero dia do amanhã.