Coautora:
Érika Auxiliadora Giacheto Scaloppi, Pesquisadora Científica do Instituto Agronômico - IAC
Na cana-de-açúcar, sempre ocorreram várias doenças, causadas por fungos, bactérias e vírus, como em qualquer outra cultura. Mais de 200 doenças já foram descritas em cana no mundo e, no Brasil, foram relatadas mais de 60. Mas as doenças de cana, até alguns anos atrás, nunca mereceram atenção do setor canavieiro. Por quê?
Porque, tradicionalmente, o controle dessas doenças foi feito pelo uso de variedades resistentes, portanto essa responsabilidade era só dos órgãos de melhoramento genético. Por muito tempo, usou-se a dinâmica de, se ocorrer doença, trocar-se a variedade. Esse foi o manejo utilizado durante todo o histórico da cana-de-açúcar em nosso País.
Essa prática começou já nos antigos “engenhos de açúcar”, quando ainda se cultivavam as variedades nobres (Saccharum officinarum). Até 1925, ocorreram epidemias de mosaico que, praticamente, arrasaram o setor canavieiro. O problema foi resolvido importando-se novas variedades (híbridos) de Java, que eram resistentes à doença.
Assim foi também com epidemias de carvão, ferrugem marrom, amarelinho, mancha-de-curvularia e, hoje, a tentativa é de fazer o mesmo com ferrugem alaranjada. Entretanto, nos anos recentes, o setor sucroalcooleiro experimentou uma grande expansão que ocorreu de forma rápida e desestruturada e, consequentemente, sem os devidos cuidados para prevenção de doenças.
Com a expansão, criaram-se condições fundamentais para que haja epidemias não só em cana-de-açúcar, mas em qualquer cultura. Essas condições são representadas pelo que podemos chamar de três continuidades: continuidade espacial, temporal e genética. A continuidade espacial significa grandes áreas cultivadas com a mesma variedade, ou variedades com a mesma suscetibilidade a doenças, o que facilita a disseminação.
Continuidade temporal é a presença de plantas vegetando o ano todo, o que facilita, em muito, a sobrevivência e a multiplicação dos patógenos. Exemplificando: para interromper essa continuidade, adotou-se o “vazio sanitário” em soja, medida esta que jamais poderá ser adotada em cana-de-açúcar, devido à característica semiperene da cultura. A última continuidade é a genética, e ela é a única que podemos alterar, visto que, quanto mais diversificarmos os materiais genéticos plantados, mais dificultaremos a disseminação de doenças.
Também a expansão levou a cultura a locais com climas muito variáveis: regiões de altitude, regiões mais secas, regiões com muita umidade... Como as doenças de plantas são muito influenciadas pelo ambiente, a instalação da cultura em áreas tão distintas proporcionou um novo comportamento das doenças e, consequentemente, da resistência das variedades de cana a essas doenças. Um exemplo é o comportamento da variedade SP81-3250, que, em regiões mais altas e/ou úmidas, se comporta como mais suscetível à ferrugem alaranjada.
Além da expansão, as mudanças tecnológicas também influenciaram muito a importância das doenças. Nós convivíamos bem com as doenças num cenário de plantio manual e corte manual de cana queimada. Atualmente, a cultura passou por uma revolução tecnológica que alterou o comportamento da cultura e das doenças, pois alterou todo o microclima dos canaviais que, atualmente, são instalados com toletes de duas gemas, cortados mecanicamente, e a colheita também é feita mecanicamente com a cana crua e, portanto, os restos culturais permanecem na área. Essas mudanças trouxeram muitos benefícios ambientais, mas alteraram a manifestação e a expressão das doenças.
Um exemplo da consequência da expansão é a “doença de solo”, chamada podridão abacaxi. Devido ao aumento das áreas, não é mais possível plantar somente nos períodos úmidos e quentes do ano, sendo necessário expandir os plantios para os meses de inverno. Esse procedimento, somado às mudanças tecnológicas na produção de mudas com utilização de toletes menores, fez com que a podridão abacaxi ganhasse novo destaque e se tornasse uma grande preocupação no plantio, sendo necessário, inclusive, o uso de fungicida nessa operação.
Outro exemplo de como as mudanças tecnológicas afetaram o comportamento das doenças foi o que ocorreu com o “complexo broca-podridão”. Nesse caso, o fungo Colletotrichum falcatum, causador da podridão vermelha, que normalmente se aproveita das aberturas feitas pela broca (Diatraea saccharalis) para penetrar na planta, atualmente teve uma mudança de comportamento, passando a penetrar diretamente, sem a presença de orifícios de broca ou naturais.
Essa mudança foi simultânea ao acúmulo de palha no corte mecanizado, pois é possível que o ambiente esteja mais propício para a variabilidade e o aumento da população do patógeno. Essa “nova forma” de penetração do fungo na planta, sem a presença de aberturas, é muito preocupante, porque não existem, no Brasil, estudos sobre medidas de controle da doença, nem produtos químicos registrados para tal finalidade.
Os danos causados pela podridão vermelha (ou Colletotrichum, como vem sendo chamada) são muito preocupantes: redução na produtividade (TCH) e drástica redução no ATR. Até o momento, as medidas de controle são: uso de variedades resistentes, embora ainda não se tenham estudos determinando quais são elas; antecipação da safra em áreas atacadas, redução de restos de cultura e rigoroso controle de pragas, para evitar a entrada do fungo por orifícios provocados pelos insetos.
Também a estria vermelha, que era um problema somente quando se plantavam variedades sensíveis à doença em terras tradicionalmente de alta fertilidade, ocorre de forma mais generalizada, pois, hoje, o preparo do solo é muito mais técnico, e a fertilização do solo, com utilização de fertilizantes orgânicos e minerais, dá condições para a doença causar perdas econômicas em locais onde ela não era comum, sendo muito importante se conhecer a resistência do material genético antes de alocá-lo.
Outra grande preocupação advinda da expansão da cultura foi o abandono dos viveiros de produção de mudas pelo setor. Quando se pensa em controle de doenças de plantas, a primeira medida para se tomar é a produção de mudas sadias, e isso só se consegue, no caso da cana-de-açúcar, com a produção de mudas em viveiros. Para isso, é necessário uso de mudas devidamente identificadas por variedade e produzidas com controle fitossanitário, como tratamento térmico e/ou cultura de meristema, como as mudas produzidas em sistema de MPB (Mudas Pré-Brotadas).
No campo de produção de mudas dentro de cada unidade, devem se seguir todas as boas práticas para a condução de viveiros, dentre elas o roguing, examinando cuidadosa e constantemente os campos, com o objetivo de remover as plantas doentes e fazendo-se a desinfestação de todo o material de corte utilizado.
O uso de viveiro é imprescindível para o controle de raquitismo-da-soqueira, escaldadura, carvão, além de reduzir o inóculo de outras doenças como a podridão vermelha. Para que fique bem clara nossa opinião, a sanidade da cana-de-açúcar começa pelo viveiro. Precisamos, urgentemente, voltar a adotar essa prática.
Quer seja com tratamento térmico, MPB (de fornecedor idôneo), ou as duas coisas. Não é necessário ter uma área de viveiro, pode ser cana cultivada em sistema de “meiosi” ou “cantose”, porém tratada como viveiro, especialmente com relação ao roguing e desinfestação de instrumentos de corte. Esses cuidados devem seguir com as áreas de produção, fazendo a desinfestação das máquinas, pelo menos na mudança de talhões.