Nós nos consideramos agricultores, pois produzimos cana-de-açúcar e soja. No entanto, antes de sermos produtores, somos cultivadores de campos biológicos — verdadeiros ecossistemas vivos, compostos por milhões de espécies interdependentes, que garantem o equilíbrio necessário para uma colheita sustentável. Nosso primeiro contato com a produção on-farm de biológicos ocorreu em um momento de dificuldades financeiras, quando buscávamos alternativas para conduzir nossas lavouras sem demandar altos investimentos. A necessidade impulsiona o progresso.
Montamos um laboratório para a produção de fungos e bactérias on-farm, com o objetivo de reduzir custos no controle da broca-da-cana (Diatraea saccharalis) e da cigarrinha-das-pastagens (Mahanarva fimbriolata). À medida que aprofundávamos nosso conhecimento, percebemos que essa prática fazia parte de um sistema agrícola mais amplo e sustentável: a agricultura regenerativa. Além da redução de custos com o controle dessas pragas, observamos inúmeros outros benefícios, como: melhoria da fertilidade do solo; redução do uso de fertilizantes químicos; diminuição das emissões de CO?; plantas mais resistentes a pragas e doenças, e sequestro de carbono no solo.
1. Coleta de micro-organismos eficientes na Mata Nativa
2. Tanque de multiplicação de micro-organismos eficientes

Nosso primeiro objetivo foi atingido com êxito: a redução de custos, com a controle da broca-da-cana e da cigarrinha-das-pastagens, tornando desnecessário o uso de defensivos químicos. A partir daí, expandimos o uso de biológicos para o controle de outras pragas, como percevejos, lagartas, nematoides, pulgões e cupins, além de doenças como mancha-alvo, oídio, mofo-branco, antracnose, crestamento foliar, podridão radicular, ferrugem-marrom, estria vermelha e septoriose, com excelentes resultados e sem necessidade de químicos.
Restauração da biologia do solo
A agricultura convencional reduz, ao longo do tempo, a diversidade biológica do solo, seja pelo uso intensivo de defensivos químicos, fertilizantes à base de cloro, seja pelo preparo excessivo da terra. Para restaurar essa biodiversidade, investimos na produção on-farm de biológicos de múltiplas espécies, conhecidos como Micro-organismos Eficientes (EM, do inglês Effective Microorganisms). Multiplicamos esses micro-organismos coletados na própria fazenda em áreas preservadas, como matas, matas ciliares e cerrado, além de fontes externas como Bokashi, EM-1 e compost tea. O objetivo é reestabelecer a vida no solo e fortalecer sua cadeia alimentar.
Com a restauração da biologia do solo, torna-se possível reduzir o uso de fertilizantes químicos solúveis. A microbiota do solo solubiliza minerais de fontes naturais, como pó de rocha fosfática, potássica e basáltica. Em nossa experiência na CAAE, adotamos uma técnica de pré-solubilização desses insumos, inoculando-os com micro-organismos em meio de cultura por 4 a 6 meses antes da aplicação. Algumas bactérias produzem metabólitos com pH próximo a 1, promovendo a decomposição ácida da rocha.
Essa prática tem impactos econômicos e ambientais significativos: ao substituir fertilizantes importados por insumos regionais, reduzimos custos, fortalecemos a segurança alimentar nacional e diminuímos a pegada de carbono associada à extração, industrialização e transporte desses produtos. Além disso, o intemperismo biológico dos pós de rocha representa uma ferramenta eficaz de sequestro de carbono no solo, possibilitando a comercialização de créditos de carbono provenientes dessa atividade.
A biologia como fonte de nutrição das plantas
Recentemente, a ciência descobriu um benefício inovador no uso de biológicos: a capacidade das plantas de se nutrirem diretamente de micro-organismos vivos, em um processo denominado rizofagia. Pelo ápice radicular, as plantas absorvem esses micro-organismos, dissolvem suas membranas e utilizam seu conteúdo celular como fonte de nutrientes, minerais e polifenóis, fortalecendo, assim, seu sistema imunológico.
Além disso, as plantas estimulam a atividade biológica no solo por meio da emissão de exsudatos pelas raízes. Esses exsudatos, compostos principalmente por açúcares ricos em carbono, representam a forma mais eficiente e econômica de adicionar carbono ao solo. Com a aplicação foliar de nutrientes e estimulantes específicos, é possível aumentar a eficiência da fotossíntese de 18% para até 60%, o que intensifica a liberação de exsudatos em até cinco vezes – passando de 3 para 15 t/ha/ano. Esse processo potencializa exponencialmente o crescimento da biologia do solo e otimiza a captação e o uso da energia solar pelas plantas e, consequentemente, o resgate de carbono no solo.
A ciclagem biológica também desempenha um papel fundamental no sequestro de carbono no solo e no aumento da matéria orgânica. Enquanto os métodos convencionais de compostagem apresentam uma conversão de aproximadamente 20% em húmus, a ciclagem biológica pode atingir até 80%. Esse efeito tem sido observado em nossos solos manejados com essa abordagem, evidenciando um aumento contínuo da matéria orgânica e melhorando a fertilidade do solo de forma sustentável.
Agricultura e Biologia: um debate necessário
Diante de tudo isso, a questão central permanece: somos apenas agricultores ou desenvolvedores de biologia em nossas fazendas? E, mais importante, seremos impedidos por leis e regulamentações de produzir nossos próprios insumos biológicos?
Atualmente, grandes multinacionais do setor agrícola exercem forte lobby junto ao Congresso Nacional para restringir a produção on-farm de biológicos. Caso essas barreiras sejam impostas, seremos forçados a adquirir biológicos embalados, industrializados, sob domínio de poucos players do mercado.
Isso representaria um entrave não apenas para nossa autonomia como produtores, mas para a própria evolução da agricultura regenerativa. A agricultura é um sistema biológico. Restringir a produção on-farm de biológicos é o mesmo que impedir o agricultor de exercer sua essência: cultivar a vida no solo.