O ano de 2020 foi muito aguardado pelo setor sucroenergético. Seria a inauguração de um novo capítulo na nossa história, com o início do RenovaBio e a abertura de um mercado totalmente novo no País: o de crédito de carbono, com os CBios. Registramos um recorde de consumo de etanol em 2019, chegando a substituir 48% da gasolina no País, e trabalhávamos com o horizonte de ampliação da demanda regida pela política nacional de biocombustíveis.
Além da perspectiva positiva do etanol, o mercado de açúcar, marcado por excesso de oferta nos últimos ciclos, começou a mudar, colocando a trajetória de preços numa curva ascendente. Em resumo, tínhamos uma bela rota de voo à nossa frente. No final de março, encerramos mais uma safra recorde de produção de etanol, com o volume de 33,3 bilhões de litros, além de 26,8 milhões de toneladas de açúcar.
Puxamos as vendas de maquinário agrícola em março, com crescimento de 162% em relação ao mesmo mês do ano passado, num total de 176 colhedoras de cana-de-açúcar comercializadas, segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores. Ou seja, o setor estava otimista e trabalhando para ampliar a oferta de seus produtos, até que o cenário mudou, não só para nós, mas especialmente para nós.
A Covid-19 restringiu a circulação de mais da metade da população, e, em meados de março, formou-se a tempestade perfeita: queda em mais de 50% na cotação internacional do petróleo, também graças à guerra entre russos e sauditas, e correspondente redução no preço da gasolina; redução de quase 40% do preço do etanol para patamares abaixo do custo de produção; retração drástica no consumo de combustíveis leves por causa do isolamento e queda superior a 20% na receita com exportação de açúcar, mesmo após a desvalorização cambial – o mercado devolveu ganhos aos perceber que o Brasil ampliaria a oferta da commodity.
A história mostra que é em momentos de dificuldade que temos, como sociedade, a oportunidade e o dever de refletir sobre o que queremos para o futuro. Foi fazendo escolhas em momentos difíceis que nos tornamos o segundo maior produtor de biocombustível no mundo e ocupamos uma posição de destaque global em energia renovável.
Entendemos que a rota não mudou: manteremos essa posição quando a crise passar, desde que os desvios táticos – como aqueles frente a tempestades na travessia do Atlântico – sejam realizados. Mesmo no ápice da crise, o setor não abre mão de seu compromisso com o mercado livre.
Trabalhamos em medidas extraordinárias e temporárias, já que as circunstâncias são evidentemente excepcionais e – esperamos – temporárias. Na década de 1970, quando os países produtores de petróleo mantinham o mundo refém, o Brasil deu o pontapé inicial de sua política de álcool combustível.
Desde então, passamos por altos e baixos, por mudanças regulatórias e de tecnologias automotivas, até o lançamento dos carros flex fuel e o empoderamento de escolha do consumidor, que passou a dispor não só de um combustível mais barato, mas de efetiva mobilidade sustentável.
Hoje, são 360 usinas e destilarias, além de 70 mil produtores rurais que, juntos, oferecem cerca de 750 mil empregos formais diretos e mais de 1,5 milhão de postos indiretos. Precisamos pensar no agora, momento em que a saúde e a segurança de todas as pessoas é prioridade total, mas também em como o País irá enfrentar os desafios que nos preocupavam antes da Covid-19 – aquecimento global, segurança energética, poluição atmosférica, geração e manutenção de emprego e renda, dentre inúmeros outros.
Desafios esses para os quais o setor sucroenergético vem oferecendo soluções sustentáveis e eficientes ano após ano. Quando falamos de poluição atmosférica, temos, em São Paulo, um exemplo de megalópole que não enfrenta os efeitos nocivos da má qualidade do ar, como Nova Déli ou Pequim.
No início de 2020, a média de concentração de Partículas Inaláveis Finas (MP 2.5) – poluente com maior efeito nocivo à saúde, pois é capaz de chegar a pontos mais profundos dos pulmões –, em Nova Déli, foi de 157 µg/m3, seis vezes mais do que o estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
No mesmo período, a cidade de São Paulo registrou cerca de 27 µg/m3. Parte dessa diferença entre as megalópoles deve-se ao uso de etanol (E100) nos carros e motos flex e do etanol anidro misturado em 27% na gasolina (E27). Isso porque o etanol de cana-de-açúcar praticamente zera a emissão de material particulado e outros poluentes nocivos à saúde quando comparado à gasolina, além de reduzir em 90% a emissão de gases causadores do efeito estufa (GEE) frente ao fóssil, ao analisarmos o ciclo de vida.
Segundo estudo da USP, o uso do etanol combustível nas oito principais regiões metropolitanas do Brasil tem sido responsável pela redução de quase 1.400 mortes e mais de 9.000 internações anuais ocasionadas por problemas respiratórios e cardiovasculares associados ao uso de combustíveis fósseis.
Trata-se de uma economia de R$ 430 milhões por ano para o sistema de saúde público e privado. A cana-de-açúcar tem contribuído com o aumento da oferta de energia no Brasil, ao mesmo tempo que diminui as emissões totais de CO2 da nossa matriz. Segundo o BP Stats Review 2019, as emissões de dióxido de carbono cresceram 2% em 2018, no mundo, a maior taxa registrada nos últimos sete anos, puxadas pelo incremento na demanda por energia primária global (+ 2,9%).
Nesse contexto, o Brasil registrou crescimento de 1,3% no consumo de energia primária, enquanto reduziu em 3,7% as emissões de CO2 em 2018. Grande parte desse feito deve-se à matriz energética renovável (45%) que incentivamos como política estratégica nacional, da qual a cana-de-açúcar participa com 17,4%.
E estamos só no início. Estimativas do Instituto de Energia e Ambiente da USP (IEE-USP), indicam enorme potencial para a produção de energia elétrica e de biometano a partir do biogás da vinhaça, da palha e da torta de filtro, subprodutos da cana, no território paulista. O biometano gerado a partir da matéria-prima que temos disponível atualmente seria capaz de substituir 70% de todo o diesel consumido no estado de São Paulo, ou 80% do consumo total de gás natural no território paulista, em 2018.
Já a geração de bioeletricidade a partir do biogás poderia atender a 93% do atual consumo residencial de eletricidade em São Paulo. Com isso, a pegada de carbono do ciclo da cana-de-açúcar seria ainda menor, chegando a patamares negativos. Temos, no Brasil, uma realidade e um potencial que muitos países buscam alcançar.
E, em momentos como o atual, com tamanhos desafios, precisamos refletir o que queremos para o futuro. E a nossa resposta é simples: queremos continuar tendo a possibilidade de escolher um combustível mais sustentável, queremos continuar reduzindo as nossas emissões. Desviaremos da tempestade, sem perder o foco da rota original.