A biodigestão anaeróbia é um processo biológico utilizado para o tratamento e valorização de resíduos orgânicos, promovendo a decomposição da matéria orgânica na ausência de oxigênio, com geração de biogás — uma mistura rica em metano — e digestato estabilizado, com potencial uso agrícola. Embora tradicionalmente aplicada a efluentes líquidos, a tecnologia tem evoluído para incluir também resíduos sólidos, como bagaço e palha de cana, torta de filtro oriundo da produção de açúcar e etanol, esterco, restos de alimentos, resíduos agroindustriais e power crops, exigindo estratégias específicas de manejo e pré-tratamento.
A codigestão de resíduos sólidos e líquidos oferece vantagens como o balanceamento da relação C/N, aumento da eficiência do processo e maior produção de metano, mas também impõe desafios operacionais relacionados à mistura, ao bombeamento e à estabilidade microbiológica do sistema. Este artigo aborda os fundamentos, tecnologias e parâmetros de desempenho envolvidos na biodigestão anaeróbia integrada, com foco na produção de biometano a partir da combinação de resíduos sólidos e líquidos.
O Brasil possui um potencial estimado de produção de 46 bilhões de metros cúbicos normais de biogás por ano, proveniente majoritariamente da indústria sucroenergética (51%), da agroindústria (43%) e do tratamento de efluentes (6%). Esse volume expressivo de biogás pode substituir uma ampla gama de fontes energéticas e insumos industriais, como gás natural (100%), diesel (70%), energia elétrica (40%), GLP (4,5x), SAF (10x), metanol (106x) e até matérias-primas químicas como a amônia (3x) utilizada na produção de fertilizantes. Dessa forma, o biogás se apresenta como uma alternativa estratégica para a diversificação da matriz energética nacional, contribuindo significativamente para a descarbonização de setores-chave da economia.
Dentro deste contexto, a indústria bioenergética se destaca como protagonista, respondendo por mais da metade do volume estimado nacional. Esse setor, amplamente disseminado pelo território brasileiro, especialmente nas regiões Centro-Sul e Nordeste, gera grandes quantidades de resíduos orgânicos líquidos e sólidos, como a vinhaça, o bagaço e a palha da cana-de-açúcar, que possuem alto potencial energético quando destinados à biodigestão anaeróbia.
Além dos resíduos gerados pela operação destes na indústria, é comum que as usinas adquiram outros resíduos para adubação orgânica do canavial, tais como estercos, que também podem ser utilizados para a geração de biogás juntamente com demais resíduos. A estrutura já consolidada da cadeia produtiva da cana, aliada à disponibilidade contínua de substratos e à infraestrutura agroindustrial existente, torna a indústria sucroenergética um pilar estratégico para a expansão da produção de biometano em escala comercial no país.
Estudos realizados mostram que a combinação da biodigestão dos resíduos orgânicos de uma usina para a geração de biometano terá um impacto significante na redução da pegada de carbono, dos atuais 25 gCO2/MJ para 2,9 gCO2/MJ, tornando esta indústria em uma das mais eficientes do mundo na redução de geração de CO2.
Além da grande vantagem na pegada de carbono que a biodigestão combinada traz quando comparada com a biodigestão de vinhaça somente, existem outras vantagens tão importantes quanto, pois aumentam muito o retorno sobre o investimento: produção durante os 12 meses do ano devido ao fato de ser possível estoque dos resíduos sólidos, aumento significativo na escala de produção, geração de composto orgânico para o canavial em quantidades muito maiores que somente a torta de filtro, retomada muito rápida da produção nominal após volta de paradas da usina.
Estas vantagens da utilização de sólidos e líquidos trazem um capex específico menor, valor agregado maior aos contratos de venda devido a não haver sazonalidade de fornecimento. O digestato resultante da codigestão também apresenta maior valor agronômico, enriquecido com matéria orgânica, nutrientes assimiláveis, microrganismos e enzimas que contribuem para a fertilidade do solo e o controle biológico de pragas. Essa estratégia não apenas eleva a produtividade de biogás, mas também consolida uma abordagem circular e sustentável de gestão de resíduos agroindustriais.
A codigestão de sólidos e líquidos é amplamente usada na Europa há vários anos, mas no Brasil são poucas empresas que a utilizam em grande escala devido à complexidade que os resíduos do sucro trazem ao projeto. Nesse contexto, os reatores do tipo CSTR (Continuous Stirred Tank Reactor) destacam-se como a tecnologia mais adequada para a digestão conjunta de resíduos sólidos e líquidos da indústria sucroenergética. Seu sistema de agitação contínua promove a homogeneização dos substratos e assegura maior estabilidade do processo, mesmo com elevadas cargas orgânicas e teores de sólidos totais acima de 10%.
A operação em regime contínuo com controle preciso de parâmetros como temperatura, pH, tempo de retenção hidráulica e taxa de alimentação permite desempenho superior em comparação a tecnologias como reatores UASB ou lagoas cobertas. Além disso, os CSTRs demandam menor diluição e apresentam maior flexibilidade para processar substratos submetidos a pré-tratamentos físico-químicos, tal como bagaço de cana. Com isso, oferecem uma solução robusta, eficiente e escalável para projetos de biometano em larga escala.
A ilustração mostra a produção de biometano de um caso real de uma usina utilizando codigestão de resíduos em reatores CSTRs. É notável o aumento de produção e a redução significativa da parcela sazonal da produção adicionando resíduos sólidos ao processo, principalmente o bagaço.
O uso do bagaço na produção de biometano e outros combustíveis avançados tem-se mostrado uma alternativa altamente eficiente quando comparada com o uso para geração de energia elétrica e etanol 2G. Mesmo sendo um material lignocelulósico, a influência da lignina na eficiência de geração pode ser solucionada utilizando-se processo de pré-tratamento com baixo custo operacional.
A biodigestão anaeróbia combinada de biomassa sólida e líquida surge como uma das alternativas mais eficientes e sustentáveis para a geração de biometano em larga escala no Brasil, especialmente no setor sucroenergético. Os benefícios observados demonstram o grande potencial técnico, econômico e ambiental dessa abordagem.
No entanto, o sucesso de empreendimentos desta natureza está fortemente condicionado à escolha da tecnologia adequada, ao correto dimensionamento dos sistemas e, principalmente, à experiência técnica aplicada em cenários com elevada complexidade operacional. Reatores CSTR, por exemplo, apresentam claras vantagens no processamento de substratos sólidos, mas exigem dimensionamento e conhecimento técnico especializado para operarem de forma eficiente e estável ao longo do tempo. Além disso, aplicações que envolvem biomassa lignocelulósica, como o bagaço de cana, requerem domínio em pré-tratamentos, manejo de mistura e controle biológico.
PRODUÇÃO DE BIOMETANO NO ANO (Nm3/Ano)
Aumento da produção de biometano por resíduos (MM Nm3/mês): Vinhaça, Torta de Filtro, Bagaço, Esterco e Total