Secretário Executivo da Abraveri – Associação Brasileira das Empresas Verificadoras de Inventários de Emissões e de Relatórios
Mecânica de funcionamento da Renovabio: Como qualquer mecanismo de mercado, há de se ter uma oferta (de certificados) para que possam ser transacionados, ou demandados, tais como qualquer ativo ou produto. Vejamos primeiro a dinâmica da oferta. O programa define um nível de emissões esperado para uma determinada quantidade de energia embarcada em um litro de combustível, independente de ser ou não renovável. Assim, o que se espera de um litro de combustível produzido é uma emissão predeterminada. No caso do RenovaBio, esse nível-base é a emissão resultante da produção e do consumo de uma unidade de combustível fóssil.
Cada produtor de combustível renovável que quiser certificar seu processo, fará uso de uma calculadora, a "RenovaCalc", para determinar as emissões de seu processo. A diferença entre as emissões verificadas e o nível-base originarão os CBios (certificados de biocombustível) que trazem em si uma expressão de mitigação de emissões. Assim são ofertados os CBios originados nas usinas. E a demanda?
A demanda será determinada por uma obrigação a ser imposta aos distribuidores e importadores de combustíveis com base na proporção de combustíveis fósseis e renováveis que comercializam. Uma vez definida essa proporção, os distribuidores que tiverem uma balança desfavorável aos combustíveis renováveis, deverão adquirir os CBios para compensar sua prática.
Assim, o formato e elasticidade da demanda só será conhecido uma vez que essa regra seja definida pela ANP. De qualquer forma, por ser uma demanda de origem regulatória, tende a ser pouco elástica, ou seja, variar pouco em função de preço (quase vertical), já que a obrigação será fixa em termos de quantidade. Dessa forma, o que vai determinar o preço e o equilíbrio é a capacidade dos ofertantes em gerarem os CBios.
Lições aprendidas de mercados de carbono e elementos para o sucesso do RenovaBio: Estou no dito “mercado de carbono” há 14 anos, desde antes do Protocolo de Kyoto entrar em vigor, e já vi muitas iniciativas focadas no mote da mitigação. Entre as iniciativas de mitigação focadas em mercado, algumas robustas, outras frágeis, ideias inovadoras, ideias fracas, ou seja, já vi um pouco de tudo.
As iniciativas de maior sucesso compartilham de algumas características que são aspecto indissociável de seu êxito. Da mesma forma, a falta dessas características, pode condenar boas ideias à inoperância. A análise que se segue avalia o RenovaBio sob essa lente de forma a identificar quais os aspectos positivos e aqueles a resolver com foco no objetivo de se promover mitigação através de um mercado de carbono oriundo dos combustíveis.
Os elementos fundamentais de programas de mercado são: 1) Propósito e 2) MRV (Mensuração, relato e verificação) que assegurem transparência e eficiência de custo do sistema.
1. Propósito:
No que tange ao propósito, há que ficar claro que a mitigação de emissões de gases de efeito estufa é o motivador central do programa. O pagamento por um CBio deve, necessariamente, promover mitigação. Se, por alguma razão, a mitigação das emissões for igual ao que ocorreria na ausência do programa, o programa não estará contribuindo para mitigação, apenas premiando uma prática já existente.
No caso da RenovaBio, o nível-base ser determinado pelo substituto fóssil, gera um prêmio automático aos produtores de renováveis pelo que eles já fazem, ou seja, um benefício a uma atividade que já está estabelecida em relação a um substituto fóssil. Assim, há uma premiação, mesmo que não haja redução de emissões adicionais, produtores serão beneficiados. Isso gerará críticas dos outros setores e especialistas em clima. Por outro lado, o estímulo econômico dado aos produtores pela venda dos CBios, pode induzir a busca de inovações de processos ainda mais eficazes de produção, que gerem menos emissões, com o objetivo de aumentar a remuneração pela geração de mais CBios.
Para resolver essa questão, é recomendável que se ajuste o nível-base para considerar um cenário corrente e evolutivo do mercado de combustíveis, ou seja, premiar os produtores pelos ganhos de eficiência, e redução de emissões correlatas e não apenas definir o fóssil como nível-base, determinando assim o padrão pelo hiato máximo, já que sabemos que as emissões de fósseis serão sempre, independente da eficiência dos biocombustíveis, as piores possíveis em termos de combustíveis líquidos.
2. MRV – Mensuração, Relato e Verificação:
Onde estará publicado o rol de regras? Quem o vai redigir? Qual a periodicidade e validade dos certificados? Quem assegura que a diferença apontada em cada planta em relação ao nível-base é real? Qual método de quantificação é utilizado? Como isso é relatado? Como se transforma uma unidade de mitigação em um título mobiliário? Quem pode inspecionar? Sob quais regras?
E assim por diante. Por isso é necessário que haja uma robusta prática de MRV que consiste em um processo de verificar os relatos de informações medidas, com base nas especificações técnicas do programa. Assim, o sucesso do programa depende da capacidade de se fazer um esquema de MRV que seja tão robusto quanto simples, de forma a ser efetivo na qualidade e de baixo custo.
O equilíbrio ideal depende de um desenho de especificações bem feito. As especificações necessárias para um sistema confiável e de baixo custo de transação devem se refletir no concatenamento adequado e eficaz de 4 especificações, a saber: uma para quantificar as emissões evitadas; uma que instrua a verificação dos relatos de emissões evitadas; uma para definir critérios e padrões para licenciamento de firmas inspetoras e; uma norma de licenciamento para entidades que irão credenciar as firmas inspetoras.
O RenovaBio não tem ainda desenhadas tais especificações. Essa tarefa não é rápida e nem pode ser superficial, leva tempo, é multidisciplinar, requer precisão e meticulosidade na sua escrita e validação. Recursos esses que são indispensáveis para a criação de uma mecânica de transparência e baixo custo de transação, sem o que, não se pode garantir um programa de interesse público nessa amplitude e com potencial de escalabilidade para outros setores. Nesse aspecto, há de se ter um grande esforço de engajamento e articulação política, sem o que, dificilmente se poderá concretizar o programa em todo o seu potencial.
De que forma e em que pontos o RenovaBio poderá beneficiar, individualmente, o produtor, os demais players do sistema, o consumidor e a Nação? Em qualquer cenário, a imposição de uma meta de consumo de renováveis através do agente distribuidor – refletindo ou não em uma redução de emissão, além da corriqueira, na produção de biocombustíveis – beneficia os produtores de biocombustíveis. Não só porque terão a opção de certificar seu processo e vender os CBios, como também, indiretamente, o estabelecimento de metas que estimulam o consumo proporcionalmente maior de biocombustíveis. Não há nenhum crime nisso.
Beneficiar um setor em virtude de que ele esteja alinhado com a estratégia climática do País, pode ser bem-vindo. Para os distribuidores, pouca diferença deve fazer. A demanda por combustíveis é pouco elástica, de forma que incrementos nos custos implicarão em repasse integral ao consumidor. Daí já se verifica que o consumidor sentirá no bolso o custo da mitigação.
À Nação restará gerenciar os impactos inflacionários de tais medidas vis-à-vis, o compromisso de mitigação assumido internacionalmente através do Acordo de Paris e o já combalido contexto político e econômico que o País vive, inclusive como resultado do recente aumento do imposto sobre combustíveis em duas ocasiões em 2017.
Outro importante player é o agente financeiro. Todo título negociado que apresente potencial de diferenciação entre custo de compra e venda através de flutuações no preço, vão gerar movimentos especulativos. Esses movimentos podem tanto ser úteis, estimulando o aumento da oferta, quanto nocivos no caso de oscilarem muito a curto-prazo ou estiverem sujeitos a controle de pequenos grupos.
Movimento esse mais difícil de prever e que de antemão nos sinaliza a importância de que reguladores e partes ofertantes e demandantes de combustíveis não se beneficiem de participar no braço financeiro desse mercado. Como exemplo, se um agente que faz parte da decisão que estabelecerá a demanda através da determinação de metas de consumo também operar no mercado, ele estará numa posição de informação privilegiada, isso é ilegal segundo a lei brasileira. Esse é um dos temas a serem resolvidos pelas normas do programa.
Entretanto é importante destacar que, qualquer que seja a mecânica usada para mitigação, existe um custo e alguém deverá pagar por isso. Há aqueles que creem que o mercado aloca recursos com mais eficácia, portanto, o custo agregado é menor que outras formas de mitigação, por exemplo, a instituição de impostos. Há outros estudos que apontam exatamente o contrário, já que o custo de transação é menor no estabelecimento de impostos. De qualquer maneira, uma articulação ampla é necessária, nos setores público e privado, para que o programa se legitimize, ganhe respaldo e possa ser replicado a outros setores em busca da mitigação de emissões.