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Newton Duarte

Presidente executivo da Cogen - Associação da Indústria da Cogeração de Energia

OpAA72

Precisamos dar maior valor à bioeletricidade
A guerra na Ucrânia precipitou um debate global sobre o futuro energético. Em meio a esse cenário instável, é legítimo imaginar que os possíveis rearranjos no fluxo comercial de petróleo e gás natural devam provocar mudanças no planejamento energético de cada país. Não seria um equívoco, portanto, repensar a maneira como o Brasil vem se preparando para as próximas décadas. Em meio a tantas alternativas, temos uma certeza: o País precisa dar mais valor à bioeletricidade. 
 
As biomassas já ocupam espaço relevante no sistema energético brasileiro, com uma história que ganhou tração na primeira metade da década dos anos 2000. Em 2005, a cogeração movida a biomassa reunia uma capacidade instalada de 5,3 GW. Hoje, as 493 termelétricas movidas a biomassas totalizam uma capacidade instalada de geração de 16,2 GW – 15% acima da capacidade da usina hidrelétrica de Itaipu. Desse total, a liderança é da indústria que processa o bagaço de cana-de-açúcar, com 11.941 MW instalados. Em seguida, vem o licor negro (subproduto da produção de papel e celulose), com 3.205 MW; e o cavaco de madeira, com 846 MW. O biogás detém 369 MW, e outras fontes somam 193 MW e completam o quadro.  

Parte dessa energia, tanto na produção de calor como na de eletricidade, destina-se ao autoconsumo. Entre os cinco setores industriais que mais usam a cogeração, estão o sucroenergético (11.964 MW), papel e celulose (3.059 MW), petroquímico (2.305 MW), madeireiro (799 MW) e alimentos e bebidas (624 MW).

Outra parte é voltada para a produção de excedentes de energia elétrica, devidamente exportados para o Sistema Interligado Nacional (SIN). Em 2021, a energia exportada pelas usinas movidas a biomassa representou uma poupança de 14 pontos percentuais (p.p.)  dos níveis de água nos reservatórios do subsistema Sudeste/Centro-Oeste (SE/CO). 

Ou seja, a cogeração já exerce um papel fundamental para a segurança energética brasileira. E um detalhe importante, que comprova a competitividade da bioeletricidade: 2/3 dessa energia já é comercializada no mercado livre, e esse percentual vem aumentando nos últimos anos. Mas essa contribuição certamente poderia ser muito maior. 
 
Nos últimos anos, as chamadas novas fontes renováveis ganharam muito espaço, especialmente as usinas eólicas e solares fotovoltaicas. Ambas, porém, são intermitentes, isto é, dependem da ocorrência de sol e vento, e parte expressiva da produção dessas fontes está distante da região Sudeste, onde se consomem praticamente 50% da energia elétrica nacional. 

Nesse sentido, as usinas movidas a biomassas, muitas delas próximas dos centros de carga, poderiam reforçar essa oferta ao longo dos próximos anos, uma vez que um de seus principais atributos é o fato de ser uma fonte firme e confiável. O próprio PDE 2031 reconhece essa contribuição, mostrando que a capacidade de geração a biomassa de cana atingiu 12,1 GW em agosto de 2021, um aumento superior a 30% em relação a 2016, justamente no auge da crise hídrica. Lembremos que as biomassas têm seu pico de produção no período de safra, de abril a novembro, o que coincide com o período seco do subsistema SE/CO.

Entretanto, o Plano Decenal de Energia 2031 (PDE 2031), publicado recentemente pelo Ministério de Minas e Energia, vem com estimativas bastante acanhadas para as biomassas. De acordo com o documento, a capacidade instalada de biomassas e biogás terá um acréscimo de apenas 1,8 GW ao final do decênio, o que significa uma redução da participação na matriz elétrica de 9% (2022) para 7,2% (2031), ao passo que a matriz sofrerá um aumento de fontes fósseis no período.
 
Uma das razões que nos leva a acreditar que exista um descasamento nas projeções do PDE 2031 é a existência do programa RenovaBio – a Política Nacional de Biocombustíveis, instituído pela Lei 13.676/2017, que busca expandir a produção de biocombustíveis no Brasil, visando elevar a produção anual de etanol de 35 para 52 bilhões de litros até 2030. Afinal, para dar conta dessa expansão, a indústria de açúcar e etanol precisará fazer uma moagem adicional de aproximadamente 200 milhões de toneladas de cana. O bagaço excedente abre espaço para adicionar outros 4 GW à matriz elétrica brasileira. Com o uso da palha da cana, o potencial adicional teórico seria de 7,1 GW. Esse potencial, vale destacar, refere-se apenas ao setor sucroalcooleiro –  sem considerar a expansão do licor negro e de outras biomassas.

O PDE 2031 também foi tímido ao projetar um inexpressivo crescimento do biogás, fonte que, na visão da Cogen, representa a nova fronteira de investimento das usinas de cana-de-açúcar – a exemplo do que fez a Raízen com sua usina Bonfim, em Guariba-SP. A vinhaça, outro subproduto da produção do etanol, e a torta de filtro poderão ser utilizadas na geração de energia, na injeção de biometano nas redes de distribuição de gás natural e como combustível para veículos agrícolas, em substituição ao diesel.

De acordo com projeções da Associação Brasileira do Biogás (Abiogás), o setor deve investir ,até o fim desta década, um total de R$ 60 bilhões para entregar um volume de 30 milhões de metros cúbicos por dia de biometano – o que representa, aproximadamente, apenas para dar uma referência de volume, o atual consumo de gás natural de toda a indústria brasileira. 

A indústria sucroalcooleira vê essa trilha de crescimento com especial interesse – não só para criar mais uma fonte de receita, mas também para atender a uma crescente demanda do mercado –, as empresas são cada vez mais pressionadas pelos investidores internacionais a adotarem práticas ESG, fator que tem influenciado uma maior procura pela aquisição de energia renovável no ambiente do mercado livre.

Portanto, são muitas as razões para uma reavaliação da importância estratégica das biomassas. Além de ser uma fonte de energia renovável e com menor impacto ambiental, as biomassas têm outros atributos: são competitivas e proporcionam uma energia com previsibilidade e qualidade, gerada perto dos consumidores, dispensando a necessidade de investimentos em longas linhas de transmissão. 

Apesar de toda essa solidez, o PDE 2031 projeta apenas um crescimento médio de 80 MW por ano, entre 2027 e 2031, de modo a totalizar 400 MW em um período de cinco anos. É pouco, se considerarmos que, neste ano de 2022, já teremos uma adição de mais de 0,8 GW de potência instalada em operação comercial. Além disso, no quinquênio 2022-2026, a própria Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) prevê a adição de mais 2,3 GW de expansão de usinas a biomassas.

Nesse sentido, seria extremamente auspicioso que o Brasil amadureça seu planejamento para um modelo mais determinístico, pelo qual a figura do planejador seja mais assertiva no direcionamento da expansão da matriz elétrica e energética, pautando esse crescimento em fontes de energia que efetivamente possam combinar os atributos necessários ao setor, ou seja,  uma energia renovável, com previsibilidade, inércia, qualidade e geração junto às cargas.