Fazer um breve resumo de todo o encadeamento histórico da formação da matriz energética ajuda na interpretação, de forma objetiva, dos rumos políticos e técnicos adotados pelo governo e seu impacto na sociedade. A geração de energia elétrica no Brasil passa por uma crise de identidade: nossa matriz, antes baseada em hidroeletricidade, começa a ceder espaço para outras fontes de energia, como térmica, eólica, solar, entre outras, a partir da criação do novo modelo do setor elétrico, instituído pela Lei 10.848, de março de 2004. Essa lei estruturou as regras e a mecânica de fornecimento de energia, implementando um planejamento focado fundamentalmente na modicidade tarifária.
Considerando a geração térmica, podemos dividir em dois grupos: as fontes convencionais de energia, como carvão, gás e nuclear, e as fontes a biomassa. Esse combustível pode ser de origem florestal, resíduos de processo produtivo, como processamento de grãos ou produção de açúcar e etanol. Quando consideramos a biomassa, independente da origem, precisamos conhecer melhor o sistema de cogeração.
Muito se fala sobre essa fonte energética limpa, porém raramente se retrata qual o real funcionamento desse processo. Olhando mais a fundo, podemos verificar que, em sua maioria, são utilizadas caldeiras a vapor, que movimentam turbinas, transformando a energia térmica em mecânica, capaz de acionar geradores e produzir energia elétrica.
Como se não bastasse, grande parte das caldeiras empregadas no passado sempre tiveram como principal objetivo reduzir ou eliminar esses rejeitos industriais pela queima. As principais mudanças só foram viabilizadas com a evolução tecnológica das máquinas de alto rendimento e o déficit energético nacional hidroelétrico, resultado direto da falta de planejamento de médio e longo prazos do setor elétrico e que a história nos apresenta como falha recorrente.
O movimento crescente das usinas de açúcar e etanol, buscando melhorar a produtividade e a eficiência energética, alavancou os conhecidos processos de cogeração, bem como a obtenção de créditos de carbono, passando a ter muita relevância dentro dos critérios de ESG, do inglês Environmental, Social & Governance.
Movimento similar pode ser observado nas indústrias de celulose e em muitas outras plantas que vêm sendo implementadas no País. Apesar do cenário caótico gerado pela pandemia nos últimos dois anos, grandes mudanças no setor elétrico foram realizadas pelo
Governo, buscando não só a maior competitividade do setor, mas também clareza nas definições de responsabilidade técnica e comercial de todos os agentes envolvidos no processo. Toda a evolução foi promovida pela Medida Provisória 998, de setembro de 2020, quando deu início às tratativas sobre a redução dos benefícios oferecidos a energias de fontes alternativas (pequenas centrais hidrelétricas, biomassa, resíduos sólidos urbanos e rurais, solar e eólica), cujo maior incentivo é o desconto sobre a parcela de uso do sistema de transmissão e distribuição (TUST e TUSD) dentro do Sistema Interligado Nacional (SIN) e previsto na Lei 9.427, de dezembro de 1996, portanto anterior ao novo modelo instituído em 2004.
A partir da nova Lei 14.120, de março de 2021, qualquer projeto que não possuía outorga ou não a solicitou até o dia 28 de fevereiro de 2022, passou a não ter direito ao benefício dos descontos sobre a parcela de uso do sistema elétrico (50% de desconto), impactando diretamente a viabilidade dos projetos em milhões de reais ao longo de toda a vigência de sua outorga.
Essas mudanças impactaram o setor de infraestrutura, tornando a apresentação de projetos perante a Aneel, Agência Nacional de Energia Elétrica, até a data limite estipulada por lei, em uma corrida insana para formalização das solicitações de outorgas, criando uma fila de milhares de pedidos a serem analisados sem prazo definido e sem uma estrutura apropriada de analistas para atendimento de tal demanda.
Novamente uma falha estrutural foi criada pela ruptura das mudanças do setor elétrico ? e que obviamente não foram dimensionadas pelo governo, considerando todo o potencial disponível da bioeletricidade. Como se não bastasse o estado insólito de volume de projetos apresentados, o Poder Executivo flexibilizou, por meio do Decreto 10.893, de dezembro de 2021, a apresentação de novas solicitações de outorgas sem a informação de acesso, isto é, dispensou-se a necessidade de um levantamento prévio para definição de um ponto de conexão viável dentro do sistema elétrico.
Diante desse montante de trabalho, ainda passível de regulamentação, a Superintendência de Concessões e Autorizações de Geração da Aneel encontra-se de mãos atadas para dar celeridade aos processos, bastando aos requerentes apenas aguardar o desfecho de sua solicitação de autorização. Saindo um pouco da esfera política energética, percebemos que existem notórias evoluções técnicas sobre a legislação e a regulamentação do setor elétrico – entre essas ações, encontra-se o saneamento de regras, normas e procedimentos que já não poderiam mais ser sustentados, pois se tratava de uma verdadeira colcha de retalhos, criada pelo compartilhamento de responsabilidades, durante anos, da Aneel, do ONS, Operador Nacional do Sistema, e da EPE, Empresa de Pesquisa Energética.
Uma das grandes evoluções para o setor de geração da bioeletricidade foi a criação da Resolução Normativa Aneel 1.000, de dezembro de 2021, que melhora a descrição dos serviços e responsabilidades atribuídas às distribuidoras de energia elétrica, apresentando em detalhes os direitos e deveres dos consumidores e autoprodutores de energia, além de sanear várias resoluções normativas obsoletas e simplificar a aplicação dos procedimentos de distribuição.
Com o mesmo intuito, a Aneel aprovou a Resolução Normativa 903, de dezembro de 2020, que promoveu uma revisão e reestruturação dos procedimentos de rede para os sistemas de transmissão, melhorando o entendimento e simplificando a arquitetura dos módulos e submódulos utilizados na elaboração do planejamento do ONS, das concessões de transmissão e dos agentes de geração conectados à rede básica e das demais instalações de transmissão.
Considerando toda a construção da matriz energética brasileira, podemos falar, com certeza, que a bioeletricidade constitui-se uma das mais importantes fontes e que sua representatividade pode ser visualizada na evolução histórica de projetos e injeção de potência no sistema.
Aprofundando-se um pouco mais na importância de um projeto de bioeletricidade na matriz energética oriunda de usinas de açúcar e etanol, podemos ver o efeito da complementaridade com a fonte hidráulica no Centro-Sul do Brasil, garantindo sua operação durante o período seco e ajudando na manutenção dos níveis de reservatório de água; além disso, o prazo de implantação de um projeto de cogeração, em geral, é menor que 2 anos. Esses projetos promovem a descentralização das fontes geradoras, aproximando mais os centros de cargas e reduzindo, assim, os custos de investimentos em transmissão de energia.