O pioneirismo brasileiro estimulou a produção e o uso do etanol combustível. No entanto, com o fim do Proálcool, o consumo do etanol só foi retomado a partir de 1980, com a viabilização da tecnologia flex, que surgiu em decorrência do crescente interesse do mercado e das montadoras na produção e na comercialização de veículos menos poluentes.
É oportuno considerar também que a inexistência de uma política pública consistente que oferecesse segurança à expansão do setor condicionou a entrega de toda a produção de etanol ao sistema Petrobras, sendo o anidro para ser adicionado à gasolina e o hidratado para ser comercializado pelos postos de combustíveis, caracterizando dependência estrutural no comportamento da oferta no ambiente monopolizado pelos interesses da Petrobras.
No horizonte do ano 2000, os produtores, percebendo o valor e a importância energética estratégica da cana-de-açúcar, ainda não totalmente aproveitados, passaram a caracterizá-la como fonte primária de energia renovável. Com isso, eles estabeleceram ações para viabilizar condições de ampliar a oferta de etanol combustível e de energia elétrica renovável para a matriz energética nacional, em linha com as diretrizes de sustentabilidade ambiental.
Com essa percepção, os produtores iniciaram um novo ciclo de expansão, agregando valor aos produtos energéticos da cana-de-açúcar, que são renováveis: caldo – produção de etanol; bagaço/palha – geração de bioeletricidade; e vinhaça – destinada ao cultivo da cana (fertirrigação).
E, a partir de 2005, com a implantação do novo modelo institucional no setor elétrico, os produtores iniciaram um ciclo virtuoso, com instalação de caldeiras de alta pressão e operação de centrais de cogeração, com uso do bagaço de cana, para ofertar bioeletricidade ao mercado.
Como resultado dessas estratégias, a fonte biomassa da cana, em 2018, produziu 21.580 GWh, equivalente ao consumo de 12 milhões de residências, e possibilitou a redução de 6,4 milhões de toneladas de CO2, posicionando a fonte biomassa com 8,6% do total de geração do Brasil, ficando a hidrelétrica com 65,7%, o gás natural, 9,3%, e a eólica, 7,5%. Essa posição da fonte biomassa deverá permanecer nesse patamar expressivo nos próximos anos.
Em 2015, o Brasil assumiu compromissos no âmbito do Acordo de Paris e instituiu o RenovaBio – Política Nacional de Biocombustíveis para induzir e criar condições para atender aos compromissos assumidos pelo País, promover adequada expansão da produção e do uso de biocombustíveis na matriz energética, atribuir ênfase na regularidade e na previsibilidade do abastecimento com a participação de agentes do mercado energético nacional.
Com a instituição da Política Nacional de Biocombustíveis, fica evidente a oportunidade para o setor sucroenergético iniciar ações para um novo ciclo virtuoso de investimentos, visando ocupar espaços na matriz energética nacional, que estão sendo atribuídos aos biocombustíveis e à oferta de energia elétrica renovável, principalmente, originada nas centrais de geração distribuída, que operam com as fontes biomassa, biogás, solar e eólica.
É interessante observar que, no estado de São Paulo, principal produtor de biocombustíveis do País, na safra 2017/2018, foram processados 350 milhões de toneladas de cana, produzindo 15 bilhões de litros de etanol e 180 bilhões de litros de vinhaça, além da geração de 21.580 GWh, utilizando parte do bagaço/palha disponível.
No atual contexto energético e ambiental, um novo derivado da cana com elevado potencial se desponta: a vinhaça do etanol, que tem sua aplicação para produção do biometano, além da fertirrigação. Adotando prioridade para o seu aproveitamento energético, o setor tem potencial para produzir 1,5 bilhão de m³/ano de biometano.
Esse novo combustível tem múltiplas aplicações de uso: injeção na rede de gás natural, já regulamentado pela ANP, geração de energia elétrica, substituição de diesel e do próprio gás natural. Com políticas públicas indutoras, o biometano terá condições de substituir o diesel nos transportes, principalmente rodoviário, para minimizar e contribuir para redução e estabilização da concentração de poluentes na atmosfera. E, considerando as metas compulsórias estabelecidas pelo RenovaBio, CNPE e ANP, induzirá a redução de emissões e ampliará a oferta de biocombustíveis, podendo o setor planejar oferta adicional de etanol e de bioeletricidade.
Com isso, a produção de etanol no estado de São Paulo poderá atingir um volume de 30 bilhões de litros/ano, no horizonte de 2030, com potencial para gerar 360 bilhões de litros/ano-safra de vinhaça, que, com as tecnologias disponíveis, poderia produzir 3 bilhões de m³/ano de biometano, que, se direcionados, poderão substituir 3 bilhões de litros de diesel/ano, reduzindo emissão de poluentes na movimentação de cargas internas nas usinas e nas frotas de caminhões que utilizam diesel nas rodovias paulistas, bem como na mobilidade urbana de pessoas.
Diante desses fatos, é importante e oportuno considerar um novo ciclo virtuoso para o setor, que pode ser justificado pelo atual ambiente prospectivo de mudanças na área energética e pelos interesses público e privados, para estabelecer ações de sustentabilidade, frente às constantes e cada vez mais severas mudanças climáticas, em sinergia com a dinâmica da expansão da oferta e do atendimento das necessidades energéticas.
Essa percepção é relevante quando consideramos ainda quais são as alternativas de combustível de baixa emissão de poluentes disponíveis, em escala, para substituição do diesel nos transportes, que respondem por mais de 65% das emissões, no caso do estado de São Paulo, com logística de produção e de abastecimento sistematizadas para assegurar, de forma eficiente e competitiva, a substituição do diesel nos transportes.
O biodiesel tem limitada capacidade de logística de produção, distante dos centros de demanda. As baterias elétricas, com suas próprias características, possuem restrições para uso em larga escala. O gás natural veicular é dependente de redes de distribuição. Portanto são alternativas pontuais, que poderão ser utilizadas transitoriamente, em tipos de uso e escalas específicas, conforme as características e a disponibilidade dessas fontes.
Considerando esses fatos e os resultados positivos alcançados com os Protocolos Agroambientais já formalizados no estado de São Paulo, fica evidente a oportunidade de instituir um novo protocolo para o aproveitamento energético da vinhaça, visando criar um marco para viabilizar oferta de novo combustível renovável – o biometano, a ser destinado, com prioridade, à substituição do diesel utilizado na movimentação de mercadorias e na mobilidade das pessoas.
A experiência obtida a partir dos Protocolos Agroambientais, implementados pela parceria dos produtores e Agentes públicos, possibilitou, entre outras medidas relevantes, a mecanização da colheita da cana, com adoção de eficientes tecnologias produzidas no estado, aproveitamento da palha na geração de energia, que contribuíram para agregar valor à indústria e melhoria da qualidade de vida e das condições das mudanças climáticas.
Para implementar condições de viabilidade técnica, econômica e institucional para uso do biometano em substituição do diesel, os agentes que participarão do protocolo proposto fomentarão desenvolvimento de motorização a gás, escoamento de biometano pela rede de distribuição de gás natural, armazenamento na forma comprimido (bioGNC) e liquefeito (bioGNL), para implementar dinâmica ao mercado de veículos com mobilidade de curto e longo curso.
No cenário atual e prospectivo, podemos considerar que há um crescente interesse do mercado pela produção e pelo uso de energias renováveis, tanto eletricidade quanto combustível. Nesse contexto, o ambiente institucional e tecnológico é favorável para o planejamento de ações estratégicas de médio e longo prazo, visando ocupar espaços para os produtos derivados da cana-de-açúcar, que estão se estruturando no mercado energético.
Portanto é oportuno que os produtores do sistema sucroenergético direcionem foco na viabilização de ações estratégicas que possibilitem engajamento nesse novo ciclo virtuoso que se está estruturando em nosso país para as energias renováveis, com ênfase nos biocombustíveis.