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Julio Espírito Santo

Consultor de Inovação Industrial

OpAA86

Escalando biocombustíveis de matérias-primas não convencionais
Nas últimas décadas, o Brasil consolidou-se como uma potência global em biocombustíveis, representado pelo etanol de cana-de-açúcar, que hoje responde por aproximadamente 30 bilhões de litros/ano e atende a mais de 70% da frota de veículos leves com tecnologia flexfuel. 
 
Essa trajetória, marcada por inovação tecnológica e marcos regulatórios como o Proálcool e, mais recentemente, o RenovaBio, não apenas garantiu segurança energética, mas também posicionou o País como um líder mundial na descarbonização do transporte e na agenda da bioeconomia. 
 
A busca global por soluções de baixo carbono e a necessidade de diversificação da matriz energética e de matérias-primas impulsionaram o setor para além da cana. 

Os últimos 15 anos testemunharam uma transformação notável, com o surgimento de novas culturas e o desenvolvimento de tecnologias para o aproveitamento de resíduos. Esta evolução, que partiu de um cenário de matérias-primas secundárias com participação quase nula, abre um panorama de oportunidades locais e globais sem precedentes.

A hegemonia da cana-de-açúcar estabeleceu um modelo de sucesso, mas a necessidade de dobrar a produção de etanol até 2050 estimulou a ascensão de novas fontes de matérias-primas, além do aprimoramento do uso da terra e da criação de valor em diferentes regiões agrícolas.

De 2010 a 2025, a produção de etanol de cana-de-açúcar se manteve estável, em torno de 30 bilhões de litros/ano, experimentando períodos desafiadores, como quebra de safras, políticas públicas desfavoráveis e protecionismos mercadológicos internacionais, dificultando a competitividade, mas com aprimoramento da eficiência industrial e agrícola e foco na sustentabilidade, como a certificação via RenovaBio, gerando bilhões de CBIOs que valorizam o produto. 

Para os próximos 15 anos, estima-se que a produção de etanol de cana-de-açúcar alcance 35-40 bilhões de litros/ano, impulsionada pela maior produtividade por hectare com novas variedades, o foco em novas fronteiras agrícolas e o manejo sustentável.

No mesmo cenário, o etanol de milho emergiu de coadjuvante a protagonista, partindo de uma produção irrelevante em 2010 (<100 milhões de litros/ano) para mais de 8 bilhões de litro/ano em 2025, representando mais de 20% da produção nacional, e com uma surpreendente taxa anual de crescimento de 20-30% da capacidade instalada, com destaque no Centro-Oeste. 

A produção de DDGS – Dried Distillers Grains (coproduto da produção de etanol a partir de grãos como o milho) – que já supera 5 milhões de toneladas/ano, além de mais de 250 milhões de litros/ano de óleo, agregando valor ao modelo de negócio e garantindo a viabilidade econômica dos projetos. 

Com a expansão da safrinha de milho (hoje em mais de 16 milhões de hectares) e novos investimentos, a produção de etanol de milho pode facilmente alcançar 30 bilhões de litros anuais até 2040, consolidando-se como um pilar estratégico da matriz energética, e gerar até 22 milhões de toneladas de DDGS, fortalecendo a cadeia de proteína animal e rações.

Com o avanço do aprimoramento das tecnologias de moagem de grãos e processamento em etanol, matérias-primas como trigo, sorgo e arroz representam um exemplo de diversificação regional e aproveitamento de resíduos, ao destinarem grãos inadequados para o mercado de alimentação para o processamento em etanol em regiões historicamente sem produção do biocombustível. 

Isto permitiu uma descentralização da produção de etanol no Brasil, que passou a ter o Sudeste como maior produtor de etanol de cana, o Centro-Ooeste como o maior de etanol de milho e sorgo e agora coloca o Sul do Brasil no mapa com trigo e arroz. 

Enquanto há 15 anos, a utilização do trigo, sorgo e arroz para biocombustíveis era negligível, hoje já existem projetos pilotos e unidades de pequena escala utilizando trigo (especialmente grãos de baixa qualidade), sorgo e arroz (quebrado/descarte). 

Ainda que a produção de etanol a partir dessas culturas esteja em poucos milhões de litros anuais, com incentivos e o desenvolvimento de tecnologias específicas o potencial destas culturas pode contribuir com alguns bilhões de litros de etanol anuais, sendo suficientes para atender a demandas locais, além de agregar valor para suas cadeias produtivas já existentes, especialmente em épocas de safra excedente ou para grãos fora de especificação para alimentação.

Vale destacar que o avanço da indústria de etanol de grãos teve apoio da biotecnologia, através das enzimas termotolerantes e leveduras produtoras de gluco-amilases, implementadas em 2018 no Brasil e que revolucionaram o cenário de processamento de grãos, se tornando o padrão no mercado, permitindo ganhos de rendimento de mais de 15% de etanol e quase 20% de óleo por tonelada de matéria-prima, melhorando a atratividade financeira dos projetos.

Representando a nova fronteira da bioenergia, temos no Brasil novas abordagens, como o etanol de agave, uma planta suculenta, originária do México e conhecida pelo seu uso na produção de tequila. Nos últimos anos, o agave esteve em fase de pesquisa e desenvolvimento no Brasil, com estudos de viabilidade agronômica e industrial liderados pelo Dr. Gonçalo Amarante Guimarães Pereira, Professor da Unicamp, em parceria com Shell e Senai. Hoje, projetos-piloto e as primeiras plantações estão emergindo na região da Bahia. 
 
O agave está sendo avaliado para uso em regiões semiáridas, como o nordeste brasileiro, com testes de produtividade indicando potencial de 6.000 a 8.000 litros de etanol/hectare/ano. Com este potencial e demanda local por biocombustíveis, o agave pode escalar rapidamente para centenas de milhares de hectares plantados, com um consumo de água 50-70% menor que o da cana. 
 
Em um exercício hipotético de cultivo do agave em apenas 1% das áreas subutilizadas existentes hoje no Brasil (157 milhões de hectares – IBGE, 2023), seria possível chegar a um volume de 10 bilhões de litros de etanol/ano (25% da produção atual no país).

Além destas culturas para etanol, temos a oportunidade do uso de seus resíduos para a produção de outros biocombustíveis, trazendo ainda mais valor à cadeia produtiva e fortalecendo o papel do Brasil como um líder no uso de energias sustentáveis na sua matriz econômica.

Até 2010, o uso de resíduos como fonte de energia era incipiente, limitado a queima de biomassas em caldeiras para a produção de eletricidade. O biogás estava em fases iniciais de uso em confinamentos. O etanol de 2ª Geração (E2G) estava em pesquisa e desenvolvimento intensivo, com muitas empresas no mundo buscando lançar seus primeiros projetos em escala comercial. No Brasil, o Centro de Tecnologia Canavieira, GranBio e Raízen se destacaram, com estas duas últimas lançando plantas em escala comercial nos anos seguintes e se tornando referências globais no tema. 
 
O biometanol, biohidrogênio e SAF eram conceitos de pesquisas em estágio muito embrionário. Hoje, o biogás apresenta crescimento robusto, com a vinhaça (cana e milho) e dejetos de animais produzindo cerca de 3 milhões de Nm³/dia em 2024. 

Para o E2G, já existem usinas comerciais no País que produzem centenas de milhões de litros/ano de E2G a partir do bagaço da cana, elevando a produtividade por hectare em até 50%, além de outros projetos em discussão. Com o SAF, com a regulamentação e investimentos em rotas como Alcohol-to-Jet (ATJ), os primeiros voos comerciais ocorreram a partir da conversão do etanol de cana, embora a produção ainda seja muito pequena (milhares de litros) e fortemente dependente de estímulos.
 
Olhando para 2040, estima-se que o potencial de produção de biogás possa superar 100 milhões de Nm³/dia (o equivalente a 70-80% do consumo atual de gás natural no Brasil), gerando um mercado bilionário e mitigando milhões de toneladas de CO2 equivalente. 

Já a produção de E2G passa por um período de resistência, devido ao ceticismo do mercado com o fracasso de projetos do passado, mas pode alcançar 5-10 bilhões de litros anuais, integrando-se e otimizando o parque industrial existente. 

Ainda, com a gaseificação avançada da biomassa, já dominada em TRL 6-7 por instituições de renome como o IPT em São Paulo, o Brasil pode se tornar um produtor significativo de biometanol e biohidrogênio, com um mercado global estimado em trilhões de dólares, onde temos muitas vantagens competitivas. 

Por último, o Brasil, com sua capacidade consolidada de produzir mais de 35 bilhões de litros de etanol/ano e estimado para ultrapassar 70 bilhões de litros anuais em 25 anos, já se posiciona para ser um dos maiores produtores globais de SAF via ATJ, com potencial de atender a uma demanda global de trilhões de dólares até 2050. A trajetória do Brasil nos biocombustíveis, que começou com a liderança na cana-de-açúcar, está se expandindo para uma era de múltiplos feedstocks e bioprodutos de alto valor agregado.

A diversificação de matérias-primas, aliada à valorização de resíduos, não é apenas uma questão de produção de energia, mas uma estratégia comercial e ambiental para geração de valor de mercado e redução de emissões de GEE.