A frase “da cana tudo se aproveita” já deixou de ser jargão para se tornar realidade disponível para todas as usinas do setor. Antes tratados como resíduos, a vinhaça, a torta de filtro, a palha e o bagaço, hoje, são, na verdade, subprodutos utilizados como fertilizantes e insumos de outras indústrias, como a do próprio etanol (de segunda geração), da celulose, dos plásticos e a do biogás.
Dentre esses usos, a produção de biogás vem ganhando destaque ao longo dos últimos anos e já se tornou comum vermos notícias de grandes empresas que buscam tornar seus produtos e processos mais verdes, substituindo o uso de combustíveis e derivados fósseis por biogás ou biometano. Indústrias automobilísticas, como a Volkswagen e a Scania, de fertilizantes, como a Yara, de alimentos, como a Liane, e suplementação animal, como a fábrica de levedura da Yes, até mesmo as de combustíveis fósseis, como a Petrobras, são exemplos pioneiros nessa busca por um mercado livre de carbono.
O biogás é a mistura de gases obtida pela degradação biológica da matéria orgânica na ausência de oxigênio. De forma simplificada, podemos dizer que tudo o que naturalmente se decompõe pode gerar biogás, desde a fração orgânica do lixo doméstico até subprodutos industriais. Por ser um processo natural extremamente adaptado, ele ocorre nas mais diversas condições. Claro que a aplicação industrial desse processo exige muito mais do que deixar o resíduo degradando em um lugar, mas falaremos disso depois.
Essa mistura é composta principalmente de metano (CH4) e dióxido de carbono (CO2), geralmente saturado em água e apresentando outros contaminantes (principalmente H2S). Sendo assim, o biogás precisa ser primeiramente purificado para a remoção de água e H2S para, em seguida, ser utilizado diretamente em caldeiras (baixa eficiência e aproveitamento energético) ou em motogeradores. Após um processo de remoção de CO2, conhecido como upgrade, o biogás torna-se o biometano – um gás semelhante, substituto e intercambiável com o gás natural –, que pode substituir os combustíveis fósseis, como gasolina, GLP e diesel.
Neste ponto, já é possível falar das muitas possibilidades de arranjos para o biogás. Por ser armazenável e gerar energia despachável, ele pode ser combinado com energias intermitentes, como a solar e a eólica, viabilizando ainda mais o uso delas. No caso de combustíveis, já que o biometano é um excelente substituto ao diesel, em uma dobradinha com o etanol, tornaria uma frota de veículos leves e pesados neutra em emissões de carbono.
E, falando em substituição ao diesel, o momento também é ideal para o biogás. Já existem tratores e caminhões de diferentes especificações disponíveis comercialmente, alinhando potência e desempenho dos veículos a diesel com a economia e a pegada zero carbono do biometano.
Outro ponto positivo do biogás é a possibilidade de produção descentralizada e interiorizada, disponibilizando gás natural verde em regiões distantes da costa e promovendo o desenvolvimento industrial dessas regiões. Esse potencial do interior é conhecido como o pré-sal caipira.
Entretanto, não é apenas no seu produto principal – o biogás – que a biodigestão é revolucionária. Seu coproduto, o digestato – material que passou pelo processo de biodigestão anaeróbia –, apresenta muitas características positivas. O composto biodigerido apresenta os mesmos teores de nitrogênio, fósforo e potássio que o resíduo original, ou seja, não há perdas no seu poder fertilizante; o que é consumida no processo de biodigestão para gerar o biogás é a matéria orgânica compostável, que seria degradada e perdida no campo de qualquer maneira.
A diferença aqui é que, quando a degradação ocorre no campo, esse processo primeiramente retira nutrientes do solo, atrasando o desenvolvimento das plantas. Ao contrário, quando o digestato é aplicado, ele já começa imediatamente a fornecer nutrientes para a cultura e pode acelerar o crescimento. O digestato tem ainda um maior potencial de agregar nitrogênio ao solo e promover sua recuperação e a fixação de carbono.
Em meio a esse clima de empolgação, é preciso uma breve pausa para reflexão. Precisamos olhar para o passado e aprender com as suas lições. Não é a primeira vez que o biogás aparece em cena: tanto na década de 1980 (à época da crise do petróleo e do projeto da Emater/PR, que instalou mais de 3.000 pequenos biodigestores no País) quanto no início nos anos 2000 (em virtude do mercado de crédito de carbono), vimos projetos surgirem nessa área, e poucos seguirem adiante. O que seria diferente dessa vez? Destacamos aqui alguns pontos.
Primeiramente, o quadro geral da necessidade de diminuição da dependência da matriz fóssil, tanto em termos econômicos e de disponibilidade (veja crise do gás na Europa) quanto no aspecto ambiental. Fontes renováveis de energia nunca foram tão buscadas e necessárias.
Em segundo lugar, o ambiente regulatório favorável, que definiu de maneira clara as características do biometano e sua equivalência e intercambialidade com o gás natural, além do novo marco regulatório do gás natural no Brasil, que cria um mercado dinâmico, com mais investimento e infraestrutura.
Por último e não menos importante, a existência de tecnologias para a produção de biogás já adaptadas e comprovadas para os subprodutos da cana, torta, vinhaça e palha. E é aqui que a escolha do produtor faz toda a diferença. Como citado anteriormente, por se tratar de um processo natural, o biogás pode ser produzido em qualquer condição, assim como qualquer fruta deixada de lado irá fermentar. Porém, do mesmo modo que a fermentação industrial é muito diferente de uma fruta esquecida, assim é a biodigestão em escala.
Para garantir o atingimento do potencial de produção de biogás do setor, garantir os contratos de fornecimento e viabilizar os projetos, é preciso tecnologia.Precisamos de processos que tenham monitoramento e controle das variáveis industriais, como qualidade e quantidade de alimentação de resíduos, temperatura, pressão, agitação e retirada de biogás dos biodigestores, para que assim não sejamos simplesmente passageiros de um processo que funciona ou não independente da nossa intervenção.
Se o presente é bom, o futuro próximo é ainda melhor para o biogás. Sua semelhança com o gás natural permite que utilizemos o biogás como matéria-prima para a indústria química, substituindo hidrocarbonetos e derivados por alternativas verdes e renováveis. Hidrogênio, combustível de aviação, metanol, DME e vários outros produtos podem ser produzidos a partir do biogás.
Muito mais do que resíduos, torta de filtro, palha e vinhaça são matérias-primas para a geração de biogás – e muito mais que biogás, um novo mundo de produtos verdes e derivados de hidrocarbonetos que apenas a escala da indústria da cana no Brasil e a tecnologia industrial de produção de biogás disponível são capazes de realizar.