O forte aumento do preço da gasolina no final do século XX fez ressurgir, no Brasil, a procura por carros a etanol, cuja fabricação tinha sido praticamente interrompida. Havia duas possibilidades para a indústria. A primeira seria produzir carros a etanol, para os quais a indústria já tinha desenvolvido autopeças apropriadas, superado dificuldades com a partida a frio e outras, e produziu carros a etanol mais eficientes e menos poluentes que os equivalentes a gasolina. A questão era se valia a pena investir na modernização do motor para atender apenas ao mercado brasileiro.
A segunda opção seria usar a tecnologia flex, desenvolvida nos EUA. Lá, a lei do ar limpo (1992) estimulou a criação de carros flex que pudessem usar tanto gasolina quanto E85, combustível com “pelo menos” 85% de etanol. Além de incentivo fiscal, a montadora, obrigada a respeitar um nível máximo de emissões do conjunto de carros novos por ela fabricados, podia compensar a venda de modelos poluentes com a venda dos flex.
Como a venda de E85 era praticamente inexistente, os flex são, de fato, motores a gasolina que permitem o emprego de etanol como um “quebra galho”. Sérgio Habib, presidente da Citroën na época da decisão no Brasil, resumiu a inadequação do flex com uma metáfora: “Carro flex é como o pato que anda, voa e nada, mas não faz nenhuma delas bem feito". É um pouco injusta com o pato, que pelo menos nada bem, e com o flex, que é otimizado para a gasolina. O próprio conceito de E85 foi alterado nos EUA e, com esse rótulo, o conteúdo de etanol pode variar entre 51% e 83%.
Quando o carro flex foi lançado no Brasil, em 2003, todas as montadoras adotaram a tecnologia. Embora usando etanol de forma menos eficiente que os antigos modelos a etanol, o preço do etanol era tão competitivo que o flex foi bem aceito. O flex é uma solução de marketing bem-sucedida, a julgar pelos 25 milhões de carros que circulam no País, e que responde por mais de 90% das vendas de carros novos. Os demais carros novos são a gasolina. Nenhum carro a etanol é produzido, embora sua venda não esteja proibida.
As dificuldades para usar o etanol de forma mais eficiente se devem a preconceitos que limitam suas vantagens sobre a gasolina apenas à questão ambiental. A mais problemática é a regra pela qual, para haver paridade econômica, o preço do etanol pode ser, no máximo, igual a 70% do da gasolina. Essa regra, usada pela maioria dos proprietários de flex, corresponde à relação entre os poderes caloríficos dos dois combustíveis, sem levar em conta outros fatores, além de que a gasolina C, disponível nos postos, contém mais de 22% de etanol anidro, atualmente 27,5%.
Em motores de combustão interna, essa comparação não faz sentido. O desempenho depende de características do combustível, tais como octanagem, razão estequiométrica, calor latente de evaporação, menos intuitivas que o poder calorífico. Em todas, o etanol supera a gasolina. Usado em motor adequado, o consumo (km/litro) de um carro a etanol pode ser da ordem de grandeza do consumo de um carro semelhante, a gasolina. O motor a etanol, além disso, é mais compacto e leve e, graças ao torque elevado, pode, inclusive, ser uma alternativa ao motor diesel em veículos leves.
Dada a explicação “científica” da paridade 70, a regra, no entanto, se tornou um paradigma. Está embutida na legislação automotiva, nos programas de mensuração de desempenho e de incentivo ao aumento da eficiência veicular do governo. Esse “pecado original” do etanol criou um conformismo, mesmo em segmentos da economia que só têm a perder. Até a atividade acadêmica e de P&D para motores a etanol é mínima, considerando a importância do combustível.
Na prática, a paridade dos flex varia de carro para carro, dependendo do modelo, do ano de fabricação, da especificação da gasolina (que já mudou várias vezes), da temperatura do ambiente e até da habilidade do motorista. Medidas feitas por revistas especializadas e comentários na internet confirmam que a paridade é, em geral, maior que 70%. Uma gestora de frotas concluiu que a paridade média medida em quase meio milhão de carros que administra se aproxima dos 80%.
O aumento de eficiência no uso do etanol veicular no Brasil, em curto prazo, depende de maior aceitação desse combustível, e, para tanto, desconstruir o Paradigma 70. Em longo prazo, vai depender de voltar a haver uma oferta de carros a etanol e/ou de carros flex que, invertendo a lógica atual, sejam otimizados para usar etanol e “quebrem um galho” com gasolina. Apesar de haver mais de quatro milhões de flex que só usam etanol, é pouco provável que a indústria tome a iniciativa, enquanto os compradores de carros e o governo tiverem uma percepção errada sobre o etanol. Só vai investir na novidade se perceber interesse do mercado e receber sinais corretos do governo. Assim, será criada uma demanda considerável, de cerca de 400 mil carros por ano, inicialmente.
Ao longo de quarenta anos, o País não teve uma política consistente para o etanol, entre a euforia e o desprestígio. O Brasil, porém, não pode prescindir do uso do etanol e precisa criar uma política equilibrada, pois a oferta de gasolina na próxima década, segundo a ANP, poderá ser insuficiente. É chegado o momento de repensar a questão, procurando formas para aumentar a efetividade no uso do combustível com o mais elevado nível de sustentabilidade.
O uso eficiente do etanol veicular afeta positivamente a economia dos consumidores e de todos os agentes ao longo da sua cadeia de produção e transformações, inclusive da indústria, que tem aí um importante nicho de mercado. Sua maior difusão contribuirá para revigorar a oferta do único combustível renovável produzido em larga escala, sem subsídios e sem monetização de suas externalidades positivas.
Como acontecer? Na visão do INEE, que tem promovido a discussão do tema nos últimos anos, será importante que o setor de cana tenha uma atitude proativa para combater a desinformação e para estimular o aumento da eficiência no uso do seu combustível. Carros a etanol mais eficientes melhoram os fundamentos econômicos do seu principal produto energético, que deixa de ficar limitado a um teto de preço de 70% da gasolina. Como a paridade já é maior de 70%, um trabalho inicial será incentivar os motoristas a medirem as paridades de seus próprios veículos, contribuindo para refutar o mito da paridade 70.
Completar essa mensagem com outras que ajudem a desconstruir os preconceitos contra o etanol será da maior importância; sempre que possível, demonstrar as virtudes do etanol. Um exemplo seria encomendar às empresas que desenvolvem e ajustam motores (sistemistas) o desenvolvimento de veículos a etanol de elevada eficiência. Outra iniciativa importante, com elevado retorno econômico e ambiental, seria trabalhar com a indústria soluções para o diesel usado no campo ser substituído pelo etanol.
Finalmente, é importante lembrar que, no passado, o Brasil era o único país do mundo onde o etanol combustível era produzido, distribuído e usado para substituir a gasolina. Hoje, porém, responde por apenas um quarto da produção mundial em um cenário de crescente interesse por carros a etanol. A preocupação de reduzir as emissões vai chamar a atenção para a necessidade de usar eficientemente o etanol, e o Brasil reúne todas as condições para liderar esse assunto, se começar a tratá-lo seriamente o mais cedo possível.