A futurologia é realmente uma ciência desafiadora –utilizar padrões do passado e do presente para prever cenários plausíveis de ocorrer no futuro. Longe de ser uma ciência exata, ela busca estabelecer padrões que servem de base para tomada de decisões; nem sempre, porém, indicam o caminho correto.
O exercício que faremos aqui não é uma previsão futurológica, pois, diferentemente dos futurólogos, muitas vezes distantes dos fatos e de suas consequências, sou, assim como você, um observador privilegiado da realidade, por estarmos vivenciando esse turbilhão de acontecimentos que estão moldando a sociedade neste exato momento.
Somos agentes ativos e passivos dessa transformação. Analisemos, por exemplo, a questão do trabalho. O mundo moderno é muito complexo e diversificado, onde convivem sistemas pré-capitalistas de produção e polos desenvolvidos e dinâmicos. Mesmo ciente de que as transformações ocorrem em ritmos diferentes em cada realidade, a crise da Covid-19 nos evidenciou uma nova forma de desempenhar atividades produtivas.
A efetividade do modo remoto de produzir e decidir é revolucionária. Percebemos que quem trabalha remotamente não trabalha menos ou com menor qualidade. Hoje, com as tecnologias de videoconferência e de salas imersivas, consigo realizar encontros virtuais com assessores em Brasília, com entidades em São Paulo e ainda participar das sessões da Câmara dos Deputados.
Como todo avanço, entretanto, ele impõe novos desafios, como o de manter o sigilo e a privacidade das pessoas para que não surja o “Grande Irmão”. Em organizações nas quais os recursos de trabalho remoto ainda não estavam estabelecidos, os gestores precisaram acelerar a digitalização de suas atividades.
Elas perceberam que o uso de soluções digitais pode atender a vários cenários que envolvam o atendimento a clientes, compensando a perda de demanda. A tendência é realmente digitalizar as atividades, mesmo nas lojas físicas, transformando-as em centros de distribuição, pois o resultado natural é o aumento na produtividade das empresas.
No cenário econômico, novas transformações. Ainda que o modelo já fosse objeto de fortes questionamentos, o mundo antes da pandemia era o da divisão internacional do trabalho e da interconectividade – moléculas são fabricadas na China, refinadas na Índia e, após uma longa viagem, terminam nas farmácias e hospitais europeus.
Esse movimento constante de pessoas e de mercadorias foi “habilmente” explorado pelo vírus. A globalização certamente não retrocederá, mas essa dependência terá que ser repensada, por uma questão de segurança nacional. As cadeias integradas mundiais de produção deverão ser revistas, abrindo espaço para a reindustrialização das economias.
Oportunidades também para a produção de alimento, especialmente proteína animal. Segundo especialistas, se nada for feito, a próxima pandemia também surgirá na China. Lá, os animais silvestres, hospedeiros primários, são criados entre humanos e vendidos vivos. Como os vírus estão sempre em mutação, eles encontram oportunidades de migrar para a espécie humana.
No final de fevereiro, o governo chinês reconheceu que precisa de regras sanitárias mais rígidas para evitar novos surtos e proibiu, temporariamente, a criação e o consumo desses animais. Toda essa demanda por proteína animal precisará ser atendida pelos mercados produtores, dentre eles o nosso agro.
Para fazer frente ao aumento da demanda mundial por alimento, o agronegócio brasileiro precisará intensificar o processo de migração para a agricultura 4.0 – um conjunto de tecnologias digitais integradas e conectadas por meio de softwares, capaz de aumentar a produtividade e a rentabilidade da lavoura.
A agricultura está se transformado. Cada vez mais, os agricultores estão deixando de usar a tradição, a experiência e a intuição no processo de tomada de decisão de seus investimentos. Nos últimos anos, sensores terrestres, drones, sistemas de rastreamento via satélite foram introduzidos no ambiente rural para coletar dados que influenciam na produtividade.
Os recursos digitais, entretanto, são predominantemente off-line, ou seja, disponibilizam dados apenas quando os equipamentos voltam para a sede da fazenda. Quando os equipamentos estiverem conectados, a coleta de dados poderá ser feita a cada minuto, conferindo ao gestor a capacidade de interferir imediatamente no processo de produção.
Pode, por exemplo, corrigir a rota de uma semeadora, direcionar a aplicação de defensivos ou remanejar tarefas programadas para equipamentos que estão conectados. É enorme o potencial de ganho de produtividade que a tecnologia da informação pode gerar. Os sistemas políticos foram testados também em sua capacidade de estabelecer as normas necessárias para fazer frente à pandemia.
Alguns governos, como Israel e Hungria, até flertaram com a possiblidade de governar por decreto, sem interferências do Parlamento, mas das emergências também surgem novas realidades. No Brasil, quando perguntado sobre o fechamento da Câmara dos Deputados, o presidente Rodrigo Maia foi enfático: “o Congresso Nacional só fechou na ditadura, não vai fechar mais”.
Precisamos estar aqui para deliberar sobre os projetos relacionados ao coronavírus e à defesa da economia. Para evitar o encontro presencial dos parlamentares, novas regras foram estabelecidas no Congresso Nacional, adotando o Sistema de Deliberação Remota - SDR para a apreciação das matérias legislativas.
Com a urgência necessária, aprovamos o estado de calamidade e a ajuda financeira aos informais e às empresas, bem como um orçamento de guerra para que as medidas adotadas não comprometam a busca pelo reequilíbrio fiscal. O SDR, por enquanto, vale apenas para os projetos de lei que tramitam em plenário, mas abre um leque de possibilidades, como o estreitamento da relação representante/representado, ampliando, inclusive, a participação direta na nossa democracia.
Transformação também na tese do Estado Mínimo. O presidente da França, Emmanuel Macron, político de direita e com passagem pelo mercado financeiro, no último dia 12, ao anunciar a prorrogação do confinamento, defendeu o “Estado providencial”. Para ele, e para nós também, o mercado e as empresas não podem socorrer as pessoas em momentos de crise, garantindo os empregos, as aposentadorias e a economia das pessoas – esse papel é do Estado.
É evidente que as medidas de auxílio econômico deixarão um legado de maior déficit público, que serão financiados no longo prazo. Mas de que serve a riqueza de um país se não há alguém para desfrutá-la. Ganha força, inclusive, a ideia da renda mínima mundial, que dá proteção às pessoas em tempos de emergência, especialmente num mundo em que o emprego formal será cada vez mais limitado.
A renda mínima mundial se opõe às ideias do liberalismo econômico, que rejeita a intervenção estatal na economia, porém, desde o século XVII, origem das teses liberais, a economia gera mais e mais riqueza; a desigualdade, ao contrário, só aumenta. Algo deverá ser feito. A resiliência da humanidade tem sido testada ao longo de toda sua história.
A peste negra, a gripe espanhola, a varíola ceifaram milhões de vidas e, apesar das profundas cicatrizes deixadas, superamos todas elas. Mas, para isso, tivemos que nos reinventar, tivemos que nos ressignificar. Com a Covid-19 não será diferente. Seremos outra sociedade quando pudermos sair livremente às ruas.
Surgirão novas formas de organização e novos conceitos de produção e consumo, mas, que no centro de nossas preocupações, estejam sempre a busca pela felicidade das pessoas e o desenvolvimento humano.