Quando começo a escrever este artigo, vejo notícias incessantes sobre grandes chuvas, com enchentes, rios subindo 9-10 metros do seu leito, milhares de pessoas e negócios, plantações e animais de criação diretamente afetados, com a necessidade de deslocamento. Muitos perderam tudo, literalmente tiveram suas raízes arrancadas, inclusive as suas vidas...
A maioria das pessoas, vendo essas notícias, ficam surpresas, como se a natureza (do clima, do regime dos rios) tivesse de ter limites, como se nós, humanos, parecêssemos ter falhado no controle dos rios, do clima. Como se nós não fôssemos parte da natureza e, ainda, sem entendermos direito como a vida (a nossa e de toda a biosfera) funciona, não tivéssemos nenhuma responsabilidade nesses eventos, ou que a natureza fosse como nós, controláveis.
E o que isso tem a ver com o tema do nosso artigo? Tudo a ver. Tivemos, na região de produção agrícola, uma seca maior do que nos últimos 90 anos. Ninguém duvida, agora, que os eventos extremos do clima, mesmo por aqui, onde temos tantas vantagens, estão cada vez mais frequentes e intensos.
Na nossa tendência humana de controle e simplificação, ficamos cada vez menos robustos, reduzimos nossas redundâncias, e isso na busca do ótimo, ou seja, do menor custo, no atendimento imediato da demanda, no atendimento dos requisitos dos clientes em qualidade e estabilidade do fornecimento, em qualquer lugar do mundo. Nada errado nisso.
No entanto, eliminar redundâncias, por exemplo, ter vários tipos de variedades aptas num determinado ambiente de produção ao invés de só uma, a “melhor”, ou controlar as pragas e doenças só com o melhor produto químico, ou, ainda, usar muito do mesmo adubo para “equalizar” os ambientes de produção, de forma a ter mais ou menos a mesma produtividade em regiões diversas, tudo isso reduz a nossa robustez, principalmente num ano desafiador como o de 2021.
Redundância e robustez significam, por exemplo, ao invés de usar o solo só como suporte para as nossas plantas (especialistas e não generalistas) obterem a água e nutrientes, construir o solo, ou, se quiserem, regenerar o solo (como um ambiente ativo, vivo, em evolução), pois todas as nossas terras agricultáveis foram originalmente florestas, com grande produtividade e abundância de água (armazenada no solo), que se mantêm, apesar de ter havido grandes secas e enchentes.
Observe que, ao longo dos rios, cheios de meandros e sujeitos a inundações e secas, há centenas ou milhares de espécies de árvores e gramíneas, que, de uma forma integrada com toda a biodiversidade (bactérias, fungos, insetos, minhocas, répteis, pássaros, mamíferos), estão ativamente se adaptando a esse ambiente, naturalmente variável.
É possível promover essa biodiversidade (ficar “antifrágil”: ficar mais forte com os choques inesperados), sem perder produtividade e sem ter prejuízo e ainda ter escala de produção? A resposta é sim! Num artigo recente de um dos maiores gurus da agricultura, com autores brasileiros e experimentos em regiões produtoras do grande agronegócio brasileiro, o Dr. Rattan Lal demonstra, com medidas de campo, que práticas relativamente simples, como plantio direto, resíduos da cultura no solo, fazendo rotação de culturas, podem regenerar totalmente o solo, como era quando havia cobertura de florestas. No entanto isso levaria décadas, e até lá? E pior ainda, parece que já estamos fazendo isso, o que falta fazer?
Se olharmos em volta, podemos ver alguns exemplos que parecem radicais demais para serem lucrativos. A cana orgânica é um fato, funciona, porém demorou dez anos para ser totalmente implantada, ou seja, após os dez anos, nenhum uso de adubos, eliminação de produtos químicos, com total mecanização e aumento de produtividade e aumento da longevidade do canavial.
Quem controla o canavial é o ambiente vivo, construído com as mudanças (radicais) nos tratos culturais e a formação de uma equipe que pensa diferente da maioria. Pode-se argumentar que a cana orgânica só tem sentido para a produção de produtos orgânicos (açúcar, etanol e seus derivados), que têm um mercado infinitamente menor do que aquele que hoje temos. É verdade. Mas não é impossível reproduzir esses experimentos bem-sucedidos nas condições econômicas da produção de commodities.
Outros exemplos: temos a cana-energia, que tem maior produção de biomassa (mais palha e mais matéria orgânica no solo), e até algumas variedades têm rizomas, que aumentam drasticamente o carbono (matéria orgânica) no solo e permitem mais de dez cortes, com produtividades crescentes. Embora as variedades atuais tenham menor teor de açúcar no seu caldo, elas têm maior teor de fibra, o que é benéfico para a cogeração, e a sua mistura com as variedades convencionais não causa impacto na moagem, nem na cristalização do açúcar.
Finalmente, temos também a integração cana-milho-boi já sendo feita. Nesse esquema, se faz a rotação da cana com milho, que é colhido e alimenta o gado estabulado. O esterco é compostado e retorna à lavoura junto com os resíduos da usina, com enorme incremento de carbono no solo.
Parece impossível? O que proponho é que todo investimento possível daqui para a frente seja feito visando ter robustez e resiliência (“antifragilidade”) no nosso negócio, fugir da variabilidade (e volatilidade) externa, ter centenas de loops de redundância, construir na lavoura um ambiente parecido com o dos banhados, as matas ciliares e outros ambientes naturais que são extremamente dinâmicos e robustos, mesmo eventualmente sem ter um solo extremamente fértil de início.
Já temos bastante conhecimento das leis da natureza para ir, gradualmente, usando esse novo conceito, em que incentivamos os comportamentos que constroem e desincentivamos os que aumentam a nossa fragilidade frente aos choques e às mudanças incontroláveis.
Não usar adubo nem insumos químicos, ambos cada vez mais caros, aumentar drasticamente a reserva de água no solo, de forma a depender menos das chuvas, cada vez mais imprevisíveis, enfrentar novas pragas cada vez mais agressivas e aumentar a produtividade não é possível de uma hora para a outra, no entanto exemplos concretos ao nosso redor, já citados, mostram o caminho a seguir. Construir solo, aumentar a biodiversidade, aumentar a redundância nos processos críticos, reduzir riscos, flexibilizar, ampliar as possibilidades, aprender com o inesperado. Pensar diferente, usar o conhecimento próprio e dos vizinhos bem-sucedidos...
Veja o que a FAO (do inglês Food and Agriculture Organization, das Nações Unidas) diz da importância da construção de um solo saudável: A FAO diz que o solo saudável ajuda na/no:
• Regulação de enchentes;
• Regulação do clima;
• Base para a infraestrutura humana;
• Fornecimento de materiais de construção;
• Fornecimento de alimento, fibras e combustíveis;
• Habitat para organismos;
• Sequestro de carbono;
• Intensificação dos ciclos da natureza (água, carbono, nitrogênio, minerais);
• Purificação da água (nascentes) e descontaminação;
• Fonte de microrganismos (material genético) que são usados na fabricação de remédio; e
• Manutenção de culturas locais (homem no campo).
Certamente não conseguiremos em apenas uma safra recuperar os danos de 2021, mas temos um bom caminho pela frente.