Ao escrever este artigo em meados de abril de 2020, a incerteza é total – sobre a evolução do contágio tanto no Brasil quanto no exterior, sobre a severidade e a duração dos impactos nos mercados e na atividade econômica e até sobre as atitudes e o comportamento das pessoas e da sociedade em geral, depois de passar tudo isso.
Diante de tanta incerteza, existe algum aprendizado concreto que já podemos destacar? E será que, mesmo que seja cedo, podemos identificar possíveis mudanças nos mercados no longo prazo que teriam consequências para o setor sucroenergético do Brasil?
Talvez, no nível das empresas, já existam aprendizados – embora nada deles seja sacada, nem novidade. Porém o valor dessas estratégias tem sido amplamente demonstrado durante a turbulência de março e de abril de 2020, quando o setor enfrentou as consequências da queda do preço de petróleo, da parada de atividade econômica para mitigar a disseminação de coronavírus e da trava no mercado de crédito diante de tanta incerteza.
Entre os fatores que permitem algumas empresas aguentarem o caos recente e enfrentarem os próximos meses com mais tranquilidade do que outras empresas, destacam-se três. Em primeiro lugar, a liquidez – quem opera com um colchão generoso de caixa fica menos vulnerável quando há um choque que interfere com suas operações ou com seu fluxo de caixa e seu financiamento.
Isso virou, há muito tempo, um mantra no discurso entre os agentes financeiros e o setor. Embora operar com o caixa em alta traga um custo adicional, a verdade é que qualquer seguro traz um custo – e ter o caixa fortalecido é um seguro contra o imprevisível. Em segundo lugar, notamos que há grandes diferenças entre as empresas quanto à capacidade de tancagem de etanol instalada nas usinas.
Ter mais capacidade exige investimento, mas confere uma flexibilidade maior na estratégia de venda. Em terceiro lugar, flexibilidade de novo – mas, nesse caso, destacamos flexibilidade no mix de produtos. Quanto mais flexível o mix, maior a capacidade da empresa de aproveitar da arbitragem entre o açúcar e o etanol. Não precisa ter uma memória boa para reconhecer isso.
Na safra passada, 2019/2020, foi o etanol que salvou o resultado do ano. A perspectiva atual, em meados de abril de 2020, sugere que seja a combinação açúcar/câmbio que oferece o melhor retorno em 2020/2021. Então, quando se trata de aprendizagens até agora, acreditamos que esses três fatores contribuem para manter a robustez das empresas de açúcar e etanol em tempos turbulentos como estes.
Mas, olhando além do curto prazo, quando a crise da Covid-19 tiver passado, há elementos mais estruturais do nosso mercado que talvez vão mudar para sempre? Os setores de commodities agrícolas e de alimentos são claramente essenciais e, assim, a disrupção gerada pelo coronavírus atual, por mais que gere desafios grandes, não parece representar uma crise existencial para o setor global de açúcar e etanol.
Então, a questão não é se vai ter futuro, a questão é se a visão do futuro continua inalterada pela crise atual. Para melhor analisar essa questão, separamos umas possibilidades para mudanças estruturais, tanto em nível nacional quanto global, em dois eixos distintos: um operacional e um de política pública.
Não sabemos se, nos próximos meses, haverá surtos de contágio que poderiam interromper operações no campo ou na usina, tanto no Brasil quanto em outros países. Mesmo se nada acontecer, é provável que toda indústria de açúcar ao redor do mundo, da mais simples à mais sofisticada, fará uma avaliação para entender o escopo para avançar a mecanização e a automatização das atividades.
Em geral, a AgTech e a inteligência artificial ganharão mais força. Aqui no Brasil, dado que as atividades em campo já são altamente mecanizadas, talvez um foco pudesse ser no plantio e na aceleração do desenvolvimento dos sistemas de cana semente. Fora do Brasil, uma questão interessante seria se as grandes safras asiáticas – a maioria das quais depende de muita mão de obra sazonal de trabalhadores migrantes – pudessem passar por mudanças.
Uma possibilidade seria um esforço maior para mecanizar as operações de colheita, para reduzir a ameaça de contágio e interrupções operacionais, caso haja outras pandemias no futuro. Se ocorrerem, haverá um impacto relevante na competitividade relativa dessas indústrias.
A experiência de mecanização da colheita no Brasil mostra que a curva de aprendizado é longa e gera, pelo menos no início, um aumento de custos de produção. E, na Ásia, a transição seria ainda mais complicada, por causa da estrutura fragmentada de produção de cana.
Uma outra possibilidade de mudança é se o trabalho migrante e a mão de obra no campo ficarem mais escassos ou mais caros na Ásia, poderia ser a erosão de área dedicada à cana, com outros cultivos – seja de menos exigência de mão de obra, seja ainda intensivo em mão de obra, mas de valor maior do que a cana – sendo favorecidos.
Passando pelo eixo de política pública, será que a crise de coronavírus vai servir para catalisar um repensamento das prioridades da sociedade global? Não passa despercebido que, em decorrência da forte queda de transporte e de uso de combustível ao redor do mundo, as emissões de gases de efeito estufa diminuíram, e a qualidade do ar, em grandes cidades – já citado pelo OMS como fator influente na saúde da população mundial –, melhorou bastante. Será que, depois que a crise atual passar, a sociedade vai se esquecer desses fatos na correria para destravar as engrenagens da economia global?
Em novembro do ano passado, o Pnuma (o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) lançou seu monitoramento mais recente da diferença entre as metas do Acordo de Paris da redução de emissões globais – que tem como objetivo limitar o aumento da temperatura global, até 2030, em 1,5 °C – e o desempenho atual.
Alertou que, até agora, os avanços têm sido muito aquém do esperado, e, se esforço adicional não for feito nos próximos sete anos, a subida da temperatura global poderia ser muito maior do que 1,5 °C, elevando o risco de eventos extremos de clima e de tempo. Talvez, no longo prazo, o mundo esteja apostando as fichas no carro elétrico como solução para reduzir as emissões do setor de transporte.
Mas o estudo do Pnuma sugere que não temos o luxo de pensar no longo prazo, e precisamos fazer mais com as soluções que temos na mão hoje. Enquanto aqui, no Brasil, o RenovaBio promete impulsionar o uso de etanol nos anos que vêm, sabemos que o etanol tem um potencial ainda grande para ajudar na redução das emissões no mundo afora.
Talvez, depois de passar tudo isso, alguns países com políticas que apoiam o preço de cana cogitem direcionar pelo menos uma parte desse apoio para produzir energia limpa em vez de produzir açúcar.