A introdução da tecnologia flex fuel para motores a combustão no começo dos anos 2000 deu início aos anos dourados do setor. A até então irrefutável competitividade de custo do etanol de cana levou a um rápido crescimento do mercado de etanol nos anos seguintes, com o consumidor final livre para optar pelo etanol hidratado em detrimento da gasolina.
A euforia causada pelo exponencial crescimento da demanda, impulsionada por um positivo ciclo econômico local e global, levou a uma impressionante alta da produção, principalmente através de projetos greenfield: o volume de cana processada no Brasil mais que dobrou, saindo de 256 milhões de toneladas na safra 2000/2001 para 620 milhões de toneladas em 2010/2011.
O cultivo da cana passou a desbravar áreas em novas regiões do País, e o etanol parecia fadado a se tornar uma commodity global com a busca por alternativas aos combustíveis fósseis. Tudo isso foi em larga parte capitaneado pelo mercado de capitais, que financiou o crescimento do setor através de IPOs, instrumentos privados de dívida e crédito estatal subsidiado. Intensificou-se um processo de profissionalização e consolidação, inclusive com entrantes vindos dos setores de petróleo, tradings de commodities e infraestrutura que adquiriram e construíram usinas.
A década seguinte trouxe um choque de realidade. Ainda que em parte causada pelas distorções da política oficial de controle de preços de combustíveis, além da desaceleração do crescimento econômico e da volatilidade cambial, o setor sucroenergético viu chegar a conta do crescimento desordenado.
Em uma atividade onde mais de 70% do custo total da produção é agrícola e predominantemente fixo, o expressivo crescimento da capacidade de moagem de cana-de-açúcar não foi seguido pela adequada manutenção nos canaviais, ainda mais quando feito em regiões não tradicionais para o cultivo da cana, que exigiriam um novo rol de técnicas do trato agrícola para uma cultura semiperene, que demanda investimento e planejamento contínuos e de longo prazo.
Somam-se a isso mudanças nas práticas de cultivo e colheita, como a mecanização, e o setor viu a produtividade medida pelo ATR por hectare cair de cerca de 12,3 toneladas na safra 2006/2007 para menos de 9,5 toneladas na safra 2011/2012, valor que ainda se manteve no último ano abaixo dos patamares de 15 anos atrás. Como consequência da rápida ascensão do custo marginal, o custo unitário médio da indústria, medido em centavos de dólar por libra-peso de produto, chegou a triplicar, muito acima da alta dos preços dos seus subprodutos açúcar, etanol e energia.
O resultado foi um período de depressão, com fechamento de usinas menos eficientes, pedidos de recuperação judicial e a disparada da alavancagem financeira de boa parte dos produtores. O setor entrou em uma encruzilhada: conforme caíam as margens e crescia o endividamento, diminuía a capacidade de investimento e manutenção adequada dos canaviais, reduzindo a disponibilidade de matéria-prima e pressionando ainda mais os custos da operação.
Há anos, o setor lida com excesso de capacidade de moagem e escassez de cana. Estima-se que a utilização de capacidade média das usinas do Centro-Sul tenha chegado a apenas 74% na safra 2010/2011, se recuperando de forma lenta nos anos seguintes. Para os players mais eficientes, esse número raramente caiu abaixo de 90%.
Para uma indústria que depende predominantemente de volume para diluir custos, esse longo e tenebroso inverno cobrou seu preço. Não foi à toa que as atividades de fusão e aquisição se tornaram mais raras, apesar do relativo grande número de ativos à venda: com excedente de capacidade, houve pouco incentivo para se adquirirem novas usinas, uma vez que o canavial correspondente era insuficiente e frequentemente depreciado.
Além disso, o estoque de dívida era, em muitos casos, superior ao valor do próprio ativo. Os múltiplos de aquisição de usinas, que chegaram a atingir US$ 140 por tonelada de capacidade de moagem durante os anos de euforia, chegaram a menos de US$ 40 por tonelada em algumas (poucas) transações recentes. Em alguns casos, as usinas foram descartadas, e o comprador apenas manteve a cana, que era o ativo efetivamente valioso.
Aqui vale um comentário adicional: esse processo de ajuste à produção mais longo do que o desejável se deveu, em parte, aos distorcidos mecanismos de precificação da cana-de-açúcar no Brasil. Em qualquer ambiente livre de preços, um bem escasso (nesse caso, a cana) teria seu valor rapidamente elevado a ponto de incentivar maior inovação e investimento em produção. No entanto, com a precificação da cana atrelada principalmente aos preços do açúcar e do etanol, conforme definido pelo Consecana, tal incentivo não ocorreu, retardando o processo de ajuste da capacidade produtiva e a recuperação das margens.
E, assim, chegamos à terceira década deste século. O desafio relacionado à elevação da produtividade ainda se impõe, principalmente se comparada a outras culturas tradicionais do País. Com o uso de biotecnologia, a produtividade média do milho safrinha subiu mais de 100% em 16 anos, a despeito de uma expansão de quase 10x na área de cultivo. Isso hoje permite, inclusive, que o etanol produzido a partir do cereal tenha se tornado mais competitivo do que o da cana em termos de custo, algo impensável há até pouco tempo.
De certa forma, os desafios transcorridos pelo setor sucroenergético durante os anos 2010 serviram com o propósito de seleção natural. Sob um cenário adverso de raras proporções, sobressaíram as empresas com capacidade financeira e operacional para manter investimentos no campo e, assim, garantir competitividade de custo, margens adequadas e baixa alavancagem financeira. Esses são os players que deverão comandar o processo de consolidação e profissionalização operacional e financeira do setor nos próximos anos. Num setor ainda tão heterogêneo, onde os quatro maiores participantes ainda reúnem menos de 30% da capacidade produtiva, é de se esperar que surja um novo ciclo de consolidação. Torçamos para que, dessa vez, esse movimento seja guiado por maior racionalidade.
A inversão de alguns dos parâmetros macroeconômicos locais, com juros reais finalmente baixos e câmbio depreciado, somada à intensificação da agenda ESG, com maior incentivo à produção e ao consumo de biocombustíveis em diversos países, trazem uma instigante e animadora perspectiva para o setor nos próximos anos.
O advento do RenovaBio reforça ainda não só o reconhecimento do papel do etanol como combustível eficiente e limpo, mas também contribui para o aumento da previsibilidade dos preços que serão recebidos pelos produtores a longo prazo, algo que o setor jamais usufruiu. Ainda no caso brasileiro, um ponto cabe destaque: uma menor presença do financiamento estatal abre espaço para uma maior participação dos mercados privados de equity, dívida e assessoria para fusões e aquisições. Parece inadmissível que um setor com tamanha importância atual e futura para a economia brasileira não tenha mais do que quatro empresas listadas em bolsa (sendo apenas três delas na B3).