A busca por cadeias produtivas mais sustentáveis é tema central nas agendas públicas e privadas, especialmente diante das crescentes exigências globais por responsabilidade socioambiental. Na safra 2024/25, o Brasil cultivou quase 8,7 milhões de hectares de cana, com destaque para os estados de São Paulo, Goiás e Minas Gerais.
Líder mundial na produção de açúcar e um dos maiores produtores de etanol do planeta, o setor sucroenergético brasileiro tem sido vocal na agenda global pelas cadeias produtivas sustentáveis. No entanto, ainda é frequentemente apontado como possível vilão ambiental e associado a atividades de desmatamento.
Será que essa percepção se sustenta com base em dados?
Antes de mais nada, é importante contextualizar o tema por meio de algumas definições importantes, pois o tema “desmatamento” é muitas vezes embutido dentro delas ao ser abordado. “Desmatamento” se refere à remoção de árvores e vegetação em uma área específica para poder abrir espaço para outra atividade. “Conversão de terra” se refere à transformação de um tipo de uso da terra para outro. O desmatamento, por exemplo, é um tipo de conversão de terra.
O termo “mudança do uso da terra” é mais amplo e pode ser entendido como as alterações no uso da terra ao longo do tempo e os fatores que motivam essas mudanças. É muito empregado na literatura na sua forma em inglês pela sigla LUC (Land Use Change).
E o que dizem a história e os dados sobre desmatamento no Brasil?
A cultura da cana-de-açúcar é cultivada no Brasil desde o século XVI. O ciclo do açúcar, período em que a sua produção foi a atividade econômica predominante no país, se deu até o século XVIII. Isso significa que o processo original de mudança do uso da terra de vegetação nativa para canavial, principalmente nas regiões Nordeste e Sudeste, ocorreu durante esse período. A produção de cana-de-açúcar também foi expandida para as novas fronteiras agrícolas da região Centro-Oeste nos estados de Goiás, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso – no entanto, estudos mostram que essa expansão se deu principalmente sobre áreas anteriormente cultivadas com pastagens.
Apesar da fama, os dados também mostram que o setor sucroenergético não é um dos principais vetores de desmatamento no Brasil atualmente. Um dos marcos importantes e que dão robustez a essa afirmação foi a criação, em 2009, do Zoneamento Agroecológico da Cana (ZAE Cana), desenvolvido pela Embrapa. Apesar de revogado em 2019, esse instrumento teve um papel importantíssimo em restringir a expansão da cultura canavieira para áreas com vegetação nativa e biomas sensíveis como Amazônia e Pantanal.
A maior parte da expansão da cana continuou em áreas de pastagem já abertas, especialmente no Cerrado e na região Centro-Sul. Dados do INPE indicam que a dinâmica atual do desmatamento no Brasil está mais fortemente ligada a outras cadeias produtivas, como a pecuária e a soja. Além disso, relatórios do Observatório da Agropecuária Brasileira e da Embrapa indicam que, nos últimos anos, o crescimento da área de cana tem sido limitado, com maior foco em ganhos de produtividade do que em expansão territorial.
É de extrema importância também o papel que teve o Protocolo Agroambiental no estado de São Paulo, desde 2007, na extinção das práticas de queima da cana e a consequente redução dos gases de efeito estufa associados aos canaviais paulistas.
Uma indicação forte de que a cana tampouco é um driver mundial de desmatamento é também o fato de não ter sido incluída na lista de commodities do escopo da regulamentação europeia antidesmatamento. O setor sucroenergético brasileiro, na verdade, vem cada vez mais adotando práticas sustentáveis e demonstrando-as ao mercado por meio de certificações e programas de sustentabilidade.
Atualmente, o Brasil possui 90 usinas certificadas pela Bonsucro, cerca de 2 milhões de hectares certificados (quase 23% da área de cana nacional), que totalizam um volume de cana certificada de cerca de 113 milhões de toneladas. A certificação Bonsucro exige o cumprimento de critérios ambientais rigorosos, incluindo rastreabilidade, proteção da vegetação nativa e respeito aos direitos trabalhistas.
O Padrão de Produção Bonsucro requer desmatamento zero em toda a área certificada. Na prática, isso significa que nenhuma área classificada como de alto valor de conservação ou ecossistema natural legalmente protegido foi convertido para canavial a partir de janeiro de 2008 e também que nenhuma área de ecossistema natural (protegido ou não) foi desmatada e convertida em agricultura a partir de janeiro de 2021.
Essas datas de corte estão em linha com as principais exigências internacionais sobre o tema. Para demonstrar conformidade, as empresas certificadas podem apresentar imagens comparativas de satélite, análises territoriais, relatórios de geoprocessamento, conhecimento local, dentre outras formas para evidenciar o uso da terra antes e depois das datas de corte. É de imensa relevância também o programa RenovaBio na demonstração da sustentabilidade e desconexão do setor sucroenergético com práticas de desmatamento. O RenovaBio certifica apenas o etanol de cana produzido a partir de áreas onde não tenha ocorrido supressão de vegetação nativa a partir de 2018 – atualmente o programa possui 289 usinas certificadas no Brasil.
Para resumir, alguns mitos comuns são:
Mito 1: “A cana está desmatando a Amazônia.”
Fato: A produção canavieira está concentrada no Centro-Sul e Nordeste do país. A expansão da cana-de-açúcar apresenta baixo risco de desmatamento.
Mito 2: “A produção de etanol compete com alimentos e com a preservação de florestas.”
Fato: A expansão da cana se dá majoritariamente em áreas de pastagem degradadas que já foram abertas, sem competição direta com alimentos ou biomas preservados.
Mito 3: “Biocombustíveis não são sustentáveis.”
Fato: O etanol brasileiro emite até 90% menos CO? do que a gasolina, considerando seu ciclo de vida. Mais de 88% do volume de etanol elegível nacional é certificado pelo RenovaBio com supressão vegetal zero a partir de 2018, e mais de 15% do etanol brasileiro já é certificado pela Bonsucro com desmatamento zero a partir de 2008 para áreas protegidas e de alto valor de conservação, e 2021 para todos os demais ecossistemas naturais.
Apesar de alvo de generalizações em relação ao desmatamento, a análise dos dados disponíveis mostra que a cana-de-açúcar, hoje, é uma das culturas agrícolas com maior controle territorial e com mecanismos robustos de sustentabilidade. Combater mitos e desinformação é essencial para fortalecer políticas públicas e escolhas conscientes, baseadas em fatos e não em percepções.
O setor sucroenergético brasileiro, na verdade, tem um grande potencial de se tornar referência em agricultura regenerativa e de baixa emissão de carbono. Fortalecer a rastreabilidade, transparência de dados e engajamento com a sociedade são caminhos para consolidar essa imagem