Professor da FEA-USP-RP e da EAESP/FGV-SP e especialista em planejamento do agronegócio
Coautoria: Vinícius Cambaúva, Engenheiro Agrônomo pela FCAV/UNESP e Mestrando em Administração pela FEA-USP-RP
O agronegócio tem passado por transformações intensas nas últimas décadas. Não é à toa que termos como “Agricultura Digital” ou “Agricultura 4.0” ecoam cada vez mais no mercado, trazendo a concepção de uma verdadeira revolução tecnológica nos mais diferentes elos das cadeias produtivas. Esses conceitos estão geralmente atrelados à inclusão de diferentes modelos de tecnologias na produção, como a inteligência artificial, sensores, análise ampla de dados (ou Big Data), segurança cibernética e compartilhamento de conteúdo em nuvem. As informações, sejam do clima, de economia ou agronômicas, já são o principal insumo dos produtores para a tomada de decisão, na busca pelo aumento da eficiência, expansão das margens e posicionamento competitivo.
Por esse motivo, muitas iniciativas têm emergido nos últimos anos, com foco na criação de produtos e soluções inovadoras para o setor. Softwares de gestão, sistemas de inteligência, equipamentos de sensoriamento remoto, aplicativos de informações técnicas e produtos à base de organismos biológicos são algumas das principais soluções oferecidas pelas AgTechs brasileiras e que seguem em linha com o contexto de orientação pela demanda. A tendência é que a administração das atividades agropecuárias passe a ser feita, majoritariamente, sob a visão de “gestão de m²”, para resolução de problemas de forma precisa, além do uso de ferramentas para economia de tempo e maior eficiência operacional. A expansão no uso dessas tecnologias no campo fez com que outros modelos também ganhassem força, como é o caso das plataformas on-line de compra e venda de produtos/soluções.
Um estudo da Consultoria McKinsey, feito no Brasil com 560 participantes e publicado em 2021, mostrou que o interesse dos agricultores por agricultura digital e o uso de plataformas on-line, especialmente para compra e venda de produtos, tem crescido no País. Segundo o relatório, 46% dos produtores têm preferência por realizar compras de insumos em canais on-line, valor que é superior, inclusive, à média dos Estados Unidos e da Europa.
No caso da comercialização, 1/3 dos participantes demonstraram estar dispostos a vender até 50% da produção por plataformas on-line. No campo, o estudo mostrou que 1 a cada 2 produtores já está usando algum tipo de tecnologia de precisão. Além disso, 45% dos entrevistados afirmaram estar dispostos a contratar tecnologias que contribuam para a elevação da produtividade na lavoura.
Já um relatório divulgado pela Embrapa e Inpe em 2020 mostrou que 84,1% dos agricultores brasileiros utilizavam pelo menos 1 tipo de tecnologia digital em seu processo produtivo. Entre as principais funções do uso dessas tecnologias, 40,5% dos entrevistados afirmaram que as utilizam para compra e venda de insumos, produtos e da produção agropecuária, a terceira categoria com maior participação.
O aumento do interesse dos agricultores pelo uso dos marketplaces tem sido observado de perto nos ecossistemas de inovação distribuídos pelo País. Hoje, segundo o relatório Radar Ag Tech Brasil 2020/21” - que é o principal estudo de mapeamento de AgTechs no País -, entre as 1.574 startups do agronegócio, 100 delas possuem soluções na categoria de marketplaces e plataformas de negociação e venda de produtos agropecuários – o que corresponde a 6,3% do total, e, embora a participação pareça pequena, é a 4ª categoria com maior número de iniciativas.
A introdução de mercados digitais no agronegócio deve agregar valor especialmente ao processo de negociação e de compra de insumos e equipamentos. Nesse sentido, podemos destacar três principais aplicações dos marketplaces no agro:
1) a comercialização de insumos agrícolas;
2) a venda de serviços e suportes para as atividades agropecuárias;
3) a comercialização da produção agrícola.
É possível notar que os dois primeiros itens têm relação direta com os agentes do “antes da porteira”, ou seja, dos fornecedores de insumos ? como defensivos, adubos, sementes, genética e outros ? e de serviços; já o último refere-se ao produtor rural (“dentro da porteira”) e suas relações com os agentes do “depois da porteira”, aqueles interessados em adquirir a matéria-prima (agroindústria, indústria de alimentos e outros). Apesar de envolver diferentes frentes, é possível notar que o produtor rural é o principal personagem e articulador desse processo, sendo que sua participação é determinante para a consolidação e o crescimento do modelo de mercados digitais.
Embora haja uma forte tendência de crescimento no uso das plataformas digitais de comercialização e/ou marketplaces no agro, ainda existem desafios a serem superados, entre eles: 1) os custos de investimentos para aquisição de equipamentos e aplicativos; 2) problemas de conectividade (internet) em grandes regiões produtoras; 3) a falta de conhecimento e/ou capacitação para uso de tecnologias; 4) a desconfiança acerca do ambiente on-line e os reais riscos que ele pode trazer; e 5) a organização dos players do setor para viabilizar redes de distribuição, como no varejo tradicional.
Uma das barreiras para o avanço da venda digital no agro é a logística de distribuição, considerando que os custos com transporte rodoviário podem inviabilizar algumas operações no comércio on-line, especialmente quando falamos de acesso a áreas rurais e da infraestrutura ainda precária em muitas regiões do País. Outro aspecto que pode prejudicar a consolidação do modelo é o cumprimento de regulações e normas do setor. No caso dos defensivos agrícolas, por exemplo, a venda de produtos só pode ser feita por meio da indicação em receituário agronômico. É necessário que haja, portanto, uma revisão dos processos legais e criação de novos mecanismos, também no ambiente on-line.
Um aspecto interessante de se observar, especialmente quando tratamos do segmento de insumos agrícolas, é que existe todo um sistema tradicional consolidado para venda e distribuição desses produtos/soluções, por meio de revendas, cooperativas e outros canais – e que envolve um grande número de agentes e profissionais com atuação direta na comercialização. Por conta disso, é necessário um grande esforço de aglutinação e integração, a fim de unir os diferentes agentes das cadeias produtivas, conectando compradores aos vendedores.
Hoje, mesmo o agricultor que ainda realiza compra e venda de forma tradicional está sendo diariamente bombardeado por experiências atrativas no ambiente on-line, o que tende a alterar seu comportamento nos próximos anos. Já não estamos mais falando sobre aceitação do mercado digital, mas sim de quando ele deve se consolidar e quais os possíveis impactos que deve trazer aos sistemas tradicionais. Cabe a nós seguir acompanhando de forma frequente, monitorando os riscos e oportunidades, e irmos nos adequando ao novo contexto.
O produtor rural já não é mais tão “caipira” quanto dizem por aí; por vezes, ele tem se tornado bem mais conectado do que profissionais de muitos outros setores.