As obras-primas “Caipira Picando Fumo” (1893) e “American Gothic” (1930), de Almeida Junior e Grant Wood, respectivamente, há muito captam a atenção pela riqueza de detalhes, pela capacidade de representar e alçar atividades e habitantes rurais ao patamar de arte. O conjunto de detalhes em ambos os quadros – o ambiente rústico, a atitude do caipira, a forquilha na mão do homem, o avental da mulher – reforça o trabalho e modos de vidas naturais e simples. Essas obras transcendem o contexto artístico e se tornaram pilares da compreensão de um “tipo” nacional nos seus países.
Uma revolução já não tão silenciosa vem ocorrendo nos últimos anos, novamente alçando atividades e trabalhadores rurais-industriais a um novo patamar de valor e atenção da sociedade. Trata-se do uso e exploração do potencial infinito dos microrganismos, mais especificamente do avanço de leveduras de alto desempenho e seu papel na transformação do meio rural em pilar da segurança energética e exemplo de circularidade econômica. Não surpreende que, ao tratar de OGM (Organismos Geneticamente Modificados), tenhamos de usar a sigla STEAM, do inglês ciência, tecnologia, engenharia, arte e matemática. Esse artigo aborda os recentes avanços em leveduras de alto desempenho e leveduras OGMs para o setor de etanol, tendências e perspectivas futuras no contexto STEAM e mercadológico.
Estima-se que, em 2024, a produção global de bioetanol alcançou 135 bilhões de litros. O recente estudo da Agência Internacional de Energia aponta para um robusto aumento na produção de combustível renovável na próxima década. De acordo com a EPE, a variação da oferta de etanol no Brasil pode alcançar até 18,7 bilhões de litros, com crescimento substancial da proporção de milho como matéria-prima. Mais de 50% do total produzido mundialmente faz uso de tecnologias baseadas em leveduras de alto desempenho e leveduras OGM. E essa proporção apenas tende a crescer. Como explicar essa revolução? Qual pode ser a contribuição futura das leveduras OGM no cenário de crescente demanda?
O campo de engenharia genética nasceu em 1973, com a construção de plasmídeos de bactérias biologicamente funcionais. Desde então, um vasto leque de avanços científicos e tecnológicos foram desenvolvidos e permitiram a leitura e desenho de ADN em grande escala, bem como a criação de ferramentas para a mudança complexa a precisa do código genético. O principal organismo modelo utilizado foi a levedura de pão, ou mais precisamente a Saccharomyces cerevisiae.
A levedura acompanha o desenvolvimento e progresso da humanidade e está presente na alimentação humana e animal, em bebidas como cerveja, vinho e mesmo no café, e em remédios biológicos e é parte essencial na valorização de produtos agrícolas como milho, cana-de-açúcar, beterraba, mandioca, arroz e respectivos coprodutos em bioetanol.
Os avanços em leveduras geneticamente modificadas (OGM) revolucionam a produção de etanol com ganhos notáveis de eficiência e rentabilidade. A ilustração em destaque mostra de forma resumida os principais resultados e benefícios com a adoção de leveduras de alto desempenho, como as linhagens OGM.
A demanda por maior desempenho das leveduras é compatível com a importância presente e futura do setor de etanol. Adicionalmente aos ganhos obtidos em rendimento fermentativo, menor consumo de insumos e maior robustez, a levedura do futuro contribuirá com a redução da intensidade de carbono (CI), conferirá maior liberdade e flexibilidade no uso e combinação de insumos e certamente adicionará maior valor aos coprodutos.
PRODUÇÃO DE ETANOL, DE GA E DA PRODUÇÃO DE GLICEROL COM CEPAS DE LEVEDURAS NÃO-OGM E OGM

Um verdadeiro arsenal de tecnologias é atualmente empregado no desenvolvimento das novas leveduras. Para o desenvolvimento de ‘chassis’ adequados ao ambiente industrial, são necessárias amplas coleções de leveduras diversificadas, posteriormente hibridizadas, selecionadas e testadas com base na matriz de critérios de desempenho para a indústria. O uso de técnicas de adaptação evolutiva em laboratório (ALE – adaptative lab evolution) é cada vez mais necessário para atingir novos níveis de desempenho. O desenho criativo e otimizado de rotas metabólicas ocorre de forma coordenada em modelos computacionais, in-vitro e in-vivo.
Verdadeiras fábricas robotizadas com tecnologia e equipamentos de ponta, as BioFoundries são empregadas para o desenho, construção e teste de organismos geneticamente modificados para aplicações em biotecnologia. Ao automatizar e sistematizar processos trabalhosos, a BioFoundry acelera e melhora significativamente a precisão dos ciclos de P&D, desde a engenharia de uma nova cepa de levedura até a produção e verificação do resultado. Mais importante ainda, elas também oferecem a oportunidade de projetar e testar milhares de protótipos microbianos simultaneamente.
Após a criação de variação genética em centenas de milhares de variantes de cepas de levedura e bactérias, todas essas opções podem ser avaliadas simultaneamente usando protocolos automatizados e softwares de análise de dados para selecionar os melhores modelos. O resultado prático: ganho em velocidade e precisão para as futuras leveduras OGM que serão encaminhadas para o processo industrial.
As distintas dimensões STEAM avançam para o desenvolvimento de leveduras OGM. Se inicialmente a ênfase se deu primordialmente em ciência e tecnologia para a concepção, desenvolvimento e aplicação de leveduras com desempenho cada vez mais elevado, atualmente observa-se atenção crescente à Engenharia e Matemática nas fases de downscaling e monitoramento e controle da fermentação industrial. A busca constante por eficiência na produção de etanol torna as novas inovações biotecnológicas incrivelmente sedutoras.
Levedura S. cerevisiae OGM, Leaf by Lesaffre

Uma nova cepa de levedura OGM que promete um aumento de rendimento de 5% em ensaios laboratoriais pode dar a impressão que é possível adaptar instalações inteiras de produção. Por vezes, esse é o impulso de escalonar o processo da escala laboratorial para o ambiente fabril, ou simplesmente o scale-up.
No entanto, essa opção é quase sempre invalidada devido aos elevados custos para a adaptação de equipamentos e processos em grande escala. O dilema da escalabilidade ou, por vezes, a demora da validação de novas tecnologias acarreta um custo de oportunidade significativo e frequentemente negligenciado.
Nesse contexto, o esforço para adaptar o laboratório à real dinâmica e complexidade da escala industrial recebe redobrada atenção. Face às dificuldades de escolha de fator de escalabilidade (as famosas regras de ouro da engenharia de escalabilidade, combinadas com a intensa variabilidade nas condições operacionais e de matérias-primas), algumas soluções empregam técnicas matemáticas avançadas e desenhos inteligentes de experimento. O objetivo é eliminar os ‘falsos positivos’, resultados a priori promissores e validados em escala laboratorial, mas que poderiam eventualmente introduzir instabilidade sistêmica.
Um organismo ou processo que funciona perfeitamente em um laboratório controlado pode se comportar de maneira imprevisível em escala industrial, levando à contaminação, rendimentos inconsistentes ou tempo de inatividade custoso que elimina quaisquer ganhos teóricos. Em paralelo, acelerar os verdadeiros positivos, isto é, resultados que trazem real ganho de eficiência, produção e operação, é o alvo a ser alcançado.
A contínua necessidade de ganho operacional e a busca por excelência operacional movem a fermentação industrial em geral e o processo de fermentação de bioetanol especificamente para a adoção de técnicas de monitoramento. Não se trata de apenas um detalhe, mas sim de essencial alavanca para extrair o máximo de valor da tecnologia das leveduras OGM, não impondo estabilidade impraticável de processo e parâmetros de entrada, mas sim buscando respostas adaptativas e conferindo flexibilidade. Entramos na era da fermentação conectada, ou da fermentação digital.
O sensoreamento com sondas como de infravermelho próximo (NIR), as técnicas estatísticas de controle de processo e a adoção de práticas há muito estabelecidas na indústria química como o golden batch são exemplos cada vez mais encontrados em usinas de etanol nas diferentes geografias. Como indicado por Stuchi, essas técnicas se enquadram de forma geral na abordagem heurística que tenta correlacionar via algoritmos os parâmetros de processo e eventualmente dados de laboratório com as variações e problemas operacionais.
A abordagem heurística demanda grandes quantidades de dados históricos e traça modelos empíricos que podem servir de recomendação com base em processos pretéritos. Com a popularização de ferramentas de Inteligência Artificial (IA), observa-se um crescente número de aplicações heurísticas no movimento de digitalização de fermentação. Entretanto, essas abordagens possuem a severa inaptidão para o controle e correção em tempo real da fermentação.
Dada a natureza complexa e não-linear do processo de fermentação de etanol, outra limitação é o risco de atuar em problemas reais diferentes daqueles diagnosticados com base em dados passados e não apenas perturbando o processo, mas também não atingindo o objetivo de otimização. Para contornar essa limitação, Stuchi cita como inovação a solução BioCal que emprega modelos fenomenológicos da fermentação de etanol.
A solução é capaz de responder à dinâmica da fermentação e respectivas variações atuando em tempo real nos elementos de controle disponíveis nas unidades industriais e dessa forma permitindo a condução de processo mais próximo ao seu ponto ótimo. Ao estar baseado em detalhada modelagem da fermentação, uso de gêmeo digital da instalação industrial e ferramentas avançadas de engenharia e matemática, a solução descreve o processo em tempo real tal qual o mesmo ocorre, e não como hipoteticamente deveria ser ou com base em dados passados.
Existe ainda um fator importante de “arte” na interação STEAM para o desenvolvimento e a aplicação industrial de leveduras OGM, em particular a “arte” de conectar diferentes campos de conhecimento. A conformidade com as exigências regulatórias é um aspecto central na transposição de inovações para o ambiente fabril. Há grande variação entre os diferentes marcos regulatórios nacionais, com maior claridade e abertura às novas tecnologias nos Estados Unidos e no Brasil.
Entretanto, é importante destacar o avanço progressivo em diversos países, como a recente abertura do mercado argentino, o dinamismo observado na Tailandia e ainda a crescente demanda por OGMs na Índia. Novas tecnologias e descobertas cientificas, como as novas técnicas genéticas (NGT – new genomic techniques no termo em inglês), tornam possível o constante aprimoramento de leveduras para a produção de etanol e ao mesmo momento desafiam a compreensão e classificação de um organismo como OGM. Em 2018, a CTNBio publicou a resolução normativa RN 16, com a definição de TIMP – técnicas inovadoras de melhoramento de precisão – e o reconhecimento de leveduras de alto desempenho como não-OGM.
No mesmo ano, os pareceres 5904 e 5905/2018 avaliam positivamente duas novas leveduras como não-OGM, abrindo o caminho para uma série de inovações que hoje beneficiam o setor de etanol de cana. Na Europa observa-se a crescente demanda pela classificação de microrganismos obtidos com uso de NGT como isentos das obrigações impostos pelo marco regulatório europeu para OGM5. Importa destacar na década de uso de OGM e leveduras de alto desempenho nos mercados de etanol dos EUA e do Brasil a total conformidade regulatória, acompanhada de ampla segurança ambiental, genética e operacional.
Almeida Jr e Wood possuem ainda muito em comum. Ambos tiveram exposição e formação em clássicas escolas francesas. Souberam alinhar tradição com pioneirismo e uma nova forma de observar seu mundo, criando obras que venceram o teste do tempo. Curiosamente, os dois artistas tiveram suas vidas próximas ao que seria o coração do mundo de etanol, Almeida Jr terminando seus dias em Piracicaba e Wood enraizado no estado americano do Iowa, regiões hoje conhecidas como referências mundiais.
A arte, a ciência, a tecnologia, a engenharia e a matemática em torno das leveduras OGM possibilitaram um salto quantitativo na eficiência da produção de etanol e se inspiram em Almeida Jr e Wood. Os avanços em leveduras OGM de alto desempenho mostram que estamos ainda no começo de um caminho virtuoso, que alinhando tradição com inovação e pioneirismo contribuirá com o legado do etanol para um planeta mais sustentável.