O mundo discute os caminhos da retomada econômica pós-pandemia, e o Brasil continua submerso em questões que não nos permitem ver o todo e o amanhã depois dessa crise. Nesse panorama, se enquadra o futuro da mobilidade e será sobre ela, e mais especificamente sobre os veículos leves de passageiros, que versará este artigo.
Corremos o risco de adotar soluções importadas, pensadas para outras realidades, mas que, de tão divulgadas, passam a ser vistas como totalmente viáveis, já que esse é o intuito dos países que disputam a hegemonia da tecnologia do futuro, quando o aquecimento global forçará a adoção de mudanças profundas e permanentes na sociedade.
Todas as opções devem ser consideradas, e a melhor solução será dada por composições de muitas delas, mas a forma com que essa discussão está se desenvolvendo não permite uma análise considerando as particularidades locais.
A questão básica deveria ser: como reduzir globalmente as emissões de gases de efeito estufa (CO2eq), para conter e depois controlar o aumento da temperatura do planeta em, no máximo, 2 °C, de forma rápida e sustentável, e não: como reduzir as emissões de CO2eq de forma a evitar a dependência energética e criando um mercado para novas tecnologias, cujo desenvolvimento, produção e exportação garantirá o domínio econômico dos países mais desenvolvidos.
Dessa forma, alternativas energéticas, como os biocombustíveis, que não interessam aos países de tecnologias avançadas, pois não as dominam, são taxadas de retrógradas, causadoras de fome e devastação ambiental, em uma guerra de desinformação em que, infelizmente, temos fornecido muita munição. Interesses comerciais são inescrupulosamente levados a extremos, e a divulgação de meias verdades é orquestrada para tornar irreversíveis as tendências em que esses atores já investiram um enorme capital.
A geração de energia solar e eólica e a produção de hidrogênio limpo, nos países que, geograficamente, têm as melhores condições para tornarem-se exportadores, é ignorada, assim como acontece com os biocombustíveis. Essa via de mão única não funciona mais. O desenvolvimento sustentável pressupõe o equilíbrio entre os três pilares, o ambiental, o social e o econômico.
A questão é global e não mais local, mas é responsabilidade de cada país definir o que é possível aceitar. Para isso, é necessário que um órgão governamental, com poder para ordenar uma discussão profícua, tome a frente e crie uma proposta clara e objetiva. A urgência em agir contra o aquecimento global favorece os biocombustíveis, principalmente os que podem ser misturados com combustíveis fósseis como a gasolina e o diesel.
Nada pode ser mais rápido do que misturar etanol à gasolina e ao biodiesel ou HVO ao óleo diesel e reduzir imediatamente a pegada ambiental da imensa frota circulante, ao invés de esperar a substituição dos veículos atuais por outros com tecnologias caras e que precisam desenvolver, antes, uma infraestrutura de abastecimento que demanda investimentos com que os países mais pobres e de grande população não podem arcar.
Pelo menos como uma transição, a utilização dos biocombustíveis deveria fazer parte da estratégia mundial. Se incentivada a produção deles, de forma sustentável em países da África e outras regiões em desenvolvimento, a criação de empregos poderia reduzir o fluxo migratório, outro problema atual, e colaborar para o equilíbrio social e econômico global.
O aspecto ambiental da sustentabilidade transcende a emissão de CO2eq, e as emissões de poluentes pelo escapamento e o ruído dos veículos com motores de combustão interna são fatores importantes que favorecem o uso da propulsão elétrica em frotas cativas ou de percurso definido nos centros urbanos, de forma a utilizar ao máximo as instalações de recarga.
Isso posto e concentrando-se na emissão de CO2eq de veículos leves, no gráfico em destaque, são consideradas as etapas envolvendo a produção dos veículos e seus componentes, dos energéticos e seu uso. O descarte e a eventual reciclagem não estão incluídos.
Ele compara veículos com motores de combustão interna (MCI) modernos com veículos eletrificados, ou híbridos (HEV), em que a eletricidade é produzida a bordo, com motores de combustão ou células de combustível (CC), que alimentam motores elétricos ligados às rodas do veículo, e veículos elétricos com baterias (BEV) carregadas externamente.
O eixo vertical mostra as faixas de consumo energético dos três tipos de veículos. Em termos médios, o consumo dos MCI é 120% maior do que o BEV e 35% maior do que o dos HEV. Estes 35% são, em grande parte, devido à energia de frenagem recuperada pela tração elétrica dos HEV.
Boa parte da grande diferença com os BEV é pelo fato de que a energia gasta para produzir os energéticos não é computada. No caso da eletricidade, esse valor pode atingir 50% em uma usina termoelétrica, contra 15% a 20% no caso dos outros combustíveis. O eixo horizontal mostra, em uma barra grossa inicial para cada tipo de veículo, a quantidade de CO2eq gerada na produção do veículo e componentes, dividida pela quilometragem total do veículo.
Nota-se que, no BEV, essa parcela é maior do que a dos outros dois, pois a fabricação das baterias exige muita energia elétrica, que ainda não é totalmente produzida por fontes limpas. Quando for, haverá um duplo benefício, na fabricação e na rodagem, o que é mostrado na região da seta de energia limpa para o BEV e para as CC com hidrogênio (H2) verde, produzido com energia limpa.
As quatro barras mais finas, na sequência, indicam o CO2eq emitido durante a utilização dos veículos pelo consumo dos energéticos. A intensidade de carbono dos combustíveis renováveis é bem mais baixa, pois o CO2 emitido pelo escapamento é retirado da atmosfera no ciclo fechado dos biocombustíveis.
Portanto, o E0, que é a gasolina pura, tem uma emissão de CO2eq maior que o E27, nossa gasolina com 27% de etanol e do E100, o etanol hidratado. A barra % RenBio mostra o resultado global da mistura de todo o etanol, anidro ou hidratado, com toda a gasolina pura consumida no Brasil, que irá variar ao longo dos anos, reduzindo a emissão total de CO2eq da frota brasileira em níveis equivalentes ao uso de veículos elétricos, onde as barras representam a geração com diferentes grids de geração elétrica.
O grid do Brasil já é o mais limpo do mundo, com grande participação da biomassa e das hidroelétricas. O uso de BEV implica no aumento de termoelétricas com gás natural, e seu efeito é mostrado na barra vermelha. Conclui-se que, mesmo com a geração de eletricidade limpa, o HEV com E100 está no mesmo patamar de CO2eq de um BEV, a um custo do veículo muito menor, com fabricação nacional, preservando empregos de qualidade em toda a cadeia de valor e sem a necessidade de infraestrutura de recarga.
No futuro, células de combustível usando H2 verde são uma tendência mundial que pode colocar os BEV em segundo plano. Elas são mostradas no quadrado verde, junto com as células do tipo SOFC, que funcionam com H2 gerado a bordo, a partir do etanol, e são a porta de entrada dos biocombustíveis para a era do H2 verde, mas que dependem de pesquisas e desenvolvimentos que não são prioridade internacional.
Essas oportunidades não podem ser desprezadas, mas só a pressão da sociedade organizada e a definição clara, pelo governo, de uma rota a ser seguida farão com que as grandes empresas invistam na pesquisa, no desenvolvimento e na industrialização dessas soluções, lembrando que elas não servem só ao Brasil, mas também a países na América Latina, na Ásia e no continente africano, que, juntos, representam um mercado importante. A diplomacia tem um papel importante, mas precisa de um exemplo interno que possa catalisar essa ação internacional.