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Plinio Mário Nastari

Presidente da Datagro

OpAA86

A evolução do sistema bioenergético: o Negócio
Como ocorre em qualquer setor, em qualquer lugar, negócios se desenvolvem à medida em que agentes econômicos buscam maximizar objetivos privados dentro dos limites estabelecidos pelo quadro regulatório definido pelas políticas públicas vigentes. Assim tem ocorrido em toda a história de desenvolvimento do setor sucroenergético brasileiro. 
 
Entre 1931 e 1989, o setor foi regido pelo Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), com uma intervenção intensa em praticamente todos os elos da cadeia de produção e comercialização. O IAA definia cotas de fornecimento de cana dos fornecedores às usinas; cotas de produção de açúcar; cotas de comercialização de açúcar, com penalidades severas àqueles que as descumprissem, pois imediatamente concluída a produção seus responsáveis passavam a ser fiéis depositários dos produtos; e também definia os preços de cana, açúcar e etanol que deveriam ser praticados. 

Além disso, o Estado, através do IAA, detinha o monopólio das exportações de açúcar, além de ser também responsável pelo desenvolvimento de tecnologias agrícola e industrial através do Planalsucar, um desdobramento do próprio IAA. Controvérsias entre fornecedores de cana e usinas eram resolvidas pelo Conselho Deliberativo (Condel) do IAA, e não pela justiça comum. 

Portanto, dentro desse contexto regulatório, os agentes privados eram meros executores de um planejamento definido pelo governo, com muito limitados graus de liberdade para competir, desenvolver estratégias comerciais, estabelecer e implementar, de forma autônoma, metas de produção e comercialização, preços dos produtos gerados, e implementar inovações.

Dentro desse contexto é que foi criado o Programa Nacional do Álcool, Proálcool, em novembro de 1975, o primeiro marco do processo de diversificação da produção que iria definir os rumos do setor dali em diante.

O Proálcool teve como meta definir as condições necessárias para que se desenvolvesse a produção e o consumo em larga escala de etanol combustível, com o objetivo de atenuar a grave dependência que o País enfrentava por petróleo e derivados importados, que respondiam à época a 81% da demanda doméstica. A elevação de preços internacionais do petróleo a partir da Primeira Crise de 1973 ameaçava a estabilidade econômica e o próprio abastecimento de combustíveis.

O Governo Federal criou linhas de financiamento para a instalação de destilarias autônomas e anexas às usinas de açúcar; estabeleceu mandato de mistura de etanol anidro à gasolina, inicialmente de 12%, e a partir de janeiro de 1978 elevado para 20% (desde agosto de 2025, a mistura obrigatória é de 30%); incentivou o desenvolvimento do primeiro motor a etanol no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos-SP; e determinou a distribuição de etanol hidratado através de infraestrutura de distribuição antes ocupada pela chamada “gasolina azul”, de octanagem mais elevada.

Como em todo grande processo de transformação, houve resistência tanto do setor produtor como da burocracia administrativa do governo, e foi com muita determinação de lideranças dos dois lados que avançou a instalação de destilarias autônomas, dedicadas exclusivamente à produção de etanol, e de destilarias anexas às usinas tradicionais produtoras de açúcar.

A diversificação na direção do etanol encontrou aceitação popular, e em meados da década de 1980 as vendas de veículos a etanol chegaram a atingir 92% das vendas totais de veículos leves. 

Isso trouxe impulso às vendas de etanol hidratado, deslocando como planejado o consumo de gasolina. Em um ambiente de preços controlados, e entre 1985 e 1990 fixados em níveis deliberadamente abaixo do custo e das referências internacionais na tentativa de controlar a inflação, foi inevitável o conflito entre o setor sucroenergético e o setor do petróleo, representado nesse caso pela Petrobras. Ocorreram discussões acaloradas sobre a inclusão do etanol na política geral de fixação de preços, ou a chamada inserção do etanol no “mix de preços de combustíveis”, assim como os limites de expansão do consumo de etanol levando em conta os limites da estrutura de refino de petróleo, que diminuía cada vez mais a proporção de gasolina e aumentava a de óleo diesel. 

O controle de preços de combustíveis em níveis abaixo do custo de produção do etanol fez com que a oferta de cana estagnasse entre 1985 e 1990, enquanto a demanda continuava em expansão impulsionada pelas vendas de carros a etanol. Isso levou o setor produtor de açúcar e etanol a importar etanol, inclusive sintético, de origens como Europa, Rússia e África do Sul, e a desenvolver junto com o governo uma mistura ternária de etanol hidratado-metanol-gasolina, que visava complementar a oferta de etanol hidratado puro. 

Essas medidas lograram sucesso mas, mesmo assim, em abril de 1989 o Departamento Nacional de Combustíveis (DNC), precursor da ANP (Agência Nacional de Petroleo, Gás Natural e Biocombustíveis), que controlava a distribuição das cotas de comercialização de etanol dos produtores às empresas distribuidoras, alocou entre essas empresas volume equivalente a apenas metade da demanda projetada para o mês seguinte. 
 
Mesmo havendo estoques suficientes de etanol nas usinas produtoras, como amplamente noticiado e demonstrado pelo setor, de forma intencional foi promovido o desabastecimento pontual de etanol em algumas localidades, com ampla repercussão na imprensa. 
Esse episódio levou ao descrédito dos consumidores em relação à capacidade do setor de manter o abastecimento, causando queda significativa na venda de carros a etanol.

Em março de 1990, assumiu o governo Fernando Collor de Mello, promovendo modernizações em várias áreas: extinção do IAA e do Instituto Brasileiro do Café, fim do monopólio às exportações de açúcar, impulso à modernização da indústria automotiva e várias outras medidas, algumas delas de impacto e repercussão negativos como o bloqueio de contas correntes da população. Foram extintas com o IAA as cotas de fornecimento de cana e de comercialização de açúcar, mas foram mantidos, entretanto, o controle da comercialização de etanol pelo DNC e o controle dos preços de açúcar e etanol pelo Ministério da Fazenda.

Com o fim do monopólio de exportações de açúcar, o setor passou a ter de aprender a vender açúcar no mercado externo. Passou também a se financiar através dessas exportações, o que levou o setor a expandir a produção, amenizando a dependência em relação ao controle estatal de preços sobre o etanol. O setor investiu em infraestrutura portuária para viabilizar a expansão da produção e exportação de açúcar. Mas a economia e o setor continuaram marcados por inflação elevada e descontrole da intervenção estatal que ainda sobrava. 

Ao mesmo tempo, o setor desenvolvia as primeiras iniciativas para a produção de bioeletricidade, com a autorização para que pudesse vender seu excedente para empresas distribuidoras de energia elétrica. Surgia assim a segunda grande diversificação, abrindo espaço e incentivo para a troca de caldeiras que haviam sido projetadas para literalmente incinerar bagaço, quando não havia alternativa para o seu aproveitamento, para caldeiras mais modernas e eficientes, reduzindo o custo e gerando mais uma fonte de receita.
 
Veio o Plano Real, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, e na sequência a liberação dos preços de açúcar em 1995, do etanol anidro em maio de 1997, e da cana e do etanol hidratado em fevereiro de 1999. Neste último momento, foi também extinta a mesa de comercialização de etanol administrada pelo governo, fazendo com que o setor tivesse de negociar livremente com as distribuidoras de combustíveis volumes e preços para o etanol anidro e hidratado. O preço do etanol hidratado, que na época era de 
R$ 0,4375 por litro, caiu para R$ 0,14 por litro, e o preço do etanol anidro caiu para R$ 0,17 por litro. Uma grave crise se instalou no setor, mais uma vez. 
 
O setor sucroenergético tentou reagir à falta de organização coletiva na comercialização, criando a Brasil Álcool S/A., que teve vida curta e foi a semente para a criação de outras empresas de comercialização por diferentes grupos de usinas. Os baixos preços do etanol estimularam novamente os consumidores a misturar etanol hidratado em proporções acima do autorizado e planejado pela engenharia automotiva dos carros em circulação e sendo vendidos, e como reação foram desenvolvidos pelas montadoras os veículos flex, capazes de utilizar qualquer mistura de etanol puro e gasolina misturada com etanol. Lançados em março de 2003, rapidamente encontraram forte adesão e, em dois anos, passaram a dominar as vendas de veículos leves, abrindo novas perspectivas de expansão para o setor. 
 
Dezenas de novas unidades produtoras foram instaladas em novas regiões de fronteira, repetindo o movimento ocorrido 20 anos antes quando houve a instalação das destilarias autônomas com o Proálcool. O desafio de desenvolver variedades de cana ainda adaptadas às condições edafoclimáticas dessas novas regiões foi multiplicado pelo compromisso de não mais queimar a palhada da cana como atividade pré-colheita para facilitar o corte manual.

O Protocolo Agroambiental, assinado em 2007 entre produtores e o governo do Estado de São Paulo e adotado pelos estados na fronteira de expansão da cana, antecipou o cronograma de eliminação da queima. Um novo grande desafio, desta vez principalmente agronômico, se instalou, com as adaptações às práticas agrícolas advindas do corte mecanizado, sistematização do solo, qualificação e treinamento de mão-de-obra, e o resultante aumento de impurezas vegetais e minerais da cana entregue nas usinas, elevando os custos e o desgaste de equipamentos industriais.

Em paralelo, em 2003, o Brasil decidiu questionar na OMC os subsídios europeus à produção e exportação de açúcar, no que recebeu a adesão dos governos da Austrália e da Tailândia. 

A União Europeia era na época o segundo maior exportador de açúcar depois do Brasil, e esses subsídios, de difícil comprovação, afetavam sobremaneira a renda e a competitividade dos produtores brasileiros. Contra todas as expectativas, e na maior disputa dos anais da OMC até hoje, com três países demandantes (Brasil, Austrália e Tailândia), contra à época 25 Estados-Membros da União Europeia e mais a Comissão Europeia, e 31 países interessados como terceiras partes, a tese defendida pelo Brasil saiu vencedora, levando a UE a reformular completamente o seu programa de açúcar, eliminando a exportação subsidiada. Esta vitória impulsionou ainda mais a produção e a exportação de açúcar do Brasil e se somou ao impulso nas vendas de veículos flex e nas vendas de etanol. 
 
O setor sucroenergético mudou completamente sua escala de produção a partir da cana-de-açúcar. E, a partir de 2013, passou a contar também com a produção de etanol de milho, que na última década cresceu impulsionada pela expansão da produção de milho de segunda safra cultivada após a colheita da soja em estados grandes produtores como Mato Grosso, Goiás e Mato Grosso do Sul. 
 
Em 1975/76, a oferta de açúcares totais recuperados (ATR) do setor foi de 7,1 milhões de toneladas. Decorridos 50 anos desde a criação do Proálcool, em 2025/26 essa oferta está projetada pela Datagro em 108,7 milhões de toneladas, sendo 91,4 milhões de toneladas a partir da cana e 17,3 milhões de toneladas a partir do milho.

Em 2017, foi criado e aprovado o Programa Nacional de Biocombustíveis, RenovaBio, um programa de certificação voluntária dos produtores de biocombustíveis com o objetivo de definir, através de uma meta de longo prazo de aumento de eficiência energética e de descarbonização no setor de transportes, um norte para a expansão futura do setor. 

O RenovaBio permitiu também a criação de um mecanismo de precificação de carbono em condições de mercado, através da livre negociação em bolsa dos créditos de descarbonização (CBios) relacionados à produção certificada de biocombustíveis, e a recompensa aos produtores pela produção e pelo aumento de eficiência obtidos através de suas notas de eficiência energética-ambiental (NEEA).

Além da materialização da externalidade positiva relacionada à redução de carbono, o RenovaBio criou um sistema de certificação individual da produção, que permite a identificação da intensidade de carbono individual de cada lote, carga ou navio carregado com etanol certificado. Outros países classificam e certificam produtores por rotas (chamadas pathways) que não permitem a identificação individual de cada lote. 

Isso é relevante à medida em que surgem novas oportunidades de mercado pelo uso do etanol para a substituição de bunker fuel na navegação marítima, para a produção de SAF (combustível sustentável de aviação) através da tecnologia alcohol-to-jet, para a produção de bioplásticos, e para a produção de hidrogênio verde através da reforma do etanol. 

A Datagro estima que, até 2050, esses quatro novos mercados representem uma demanda potencial de 810 milhões de toneladas de etanol, o que equivale a 9,2 vezes da produção mundial de 2024, de 89 milhões de toneladas.

No campo regulatório, o Brasil já se posicionou na vanguarda mundial ao eleger, no RenovaBio, no Programa Mover e na Lei Combustível do Futuro, a Avaliação do Ciclo de Vida, também conhecida como critério “berço-ao-túmulo”, como métrica para definir o que deve ser considerado sustentável. 

A quase totalidade dos demais países ainda utiliza o limitado e parcial critério denominado “tanque-à-roda”, que leva em conta apenas emissões de cano de escape, com resultados limitados e pouco eficazes para o controle do aquecimento global. A adoção geral da avaliação do ciclo de vida poderá ser uma agenda relevante a ser destravada na COP30. Mas, mesmo no Brasil, ainda podemos avançar mais.


Estudos da Embrapa e de centros internacionais de pesquisa mostram que o retorno dos resíduos da cana para o campo, através da vinhaça, torta de filtro, cinzas, as raízes da cana-de-açúcar e a palhada que permanece após a colheita, forma um estoque natural de carbono capaz de capturar e armazenar volumes significativos de CO?, muitas vezes superiores aos de florestas jovens ou de sistemas de pastagem. Essa reserva subterrânea é uma das maiores forças da agricultura tropical brasileira — mas sua relevância ainda não é plenamente capturada pelas metodologias oficiais de mensuração de emissões, como a RenovaCalc, que balizam o RenovaBio e o mercado de créditos de descarbonização (CBios).

O reconhecimento científico desse carbono é mais do que um ajuste técnico: pode ser uma mudança de paradigma. Ao incorporar o estoque de carbono do solo, o Brasil não apenas poderá demonstrar com maior precisão os ganhos ambientais de seus biocombustíveis, mas fortalecerá a competitividade do etanol e da biomassa frente a outras fontes de energia.

O etanol, a bioeletricidade, o biogás e biometano, a extração de leveduras, a captura de CO2 biogênico para venda à indústria e a produção de combustíveis sintéticos, a produção de etanol de segunda geração e os novos mercados já citados colocam o setor sucroenergético, de cana e de milho, no centro das atenções relacionadas a segurança energética, segurança alimentar e controle do risco climático.

O negócio do setor sucroenergético se sofistica com a diversificação crescente e a busca incessante pelo aproveitamento integral da energia da biomassa. O etanol é a solução ambiental e energética que permite implementação imediata de medidas voltadas à descarbonização, sem a necessidade de mudanças de frota ou de infraestrutura de distribuição de energia. É replicável, pois não apresenta barreira tecnológica de entrada.

É escalável ao longo do tempo, com benefícios comprovados à saúde e ao meio ambiente. Permite o aproveitamento econômico de matérias-primas e resíduos orgânicos disponíveis na economia. Permite às montadoras de veículos cumprirem os mais restritivos objetivos de emissões. Alavanca a produção simultânea de energia e alimentos no campo, gerando renda, emprego e desenvolvimento descentralizado.

Não por outro motivo, o modelo de negócio do setor sucroenergético brasileiro tem servido de exemplo para iniciativas em vários outros países, como Índia, Indonésia, Tailândia, Filipinas, Japão, China, Argentina, Paraguai, Bolívia, Colômbia, Guatemala, El Salvador e Nigéria, dentre outros. Com certificação individual capaz de abrir novos mercados e a perspectiva de reduzir ainda mais a sua intensidade de carbono já extremamente baixa, o setor tem um enorme potencial à sua frente, valorizando cada vez mais o negócio do setor sucroenergético, no Brasil e no mundo.