Muito se tem falado sobre as possíveis implicações da ascensão do etanol de milho no Brasil para os produtores do biocombustível a partir da cana-de-açúcar. Os preços baixos do etanol na safra 2023/24 foram parcialmente creditados ao aumento do produto originado do milho, tendo como consequência uma disparidade crescente na remuneração entre o açúcar e o combustível. Mas, antes de sentenciar a cana a um futuro 100% doce, é preciso analisar de perto alguns fatores que podem equilibrar essa balança.
As últimas décadas foram marcadas por debates incessantes em escala global a respeito do desenvolvimento sustentável, que tem como um de seus pilares a substituição de fontes de energia tradicionais por renováveis. Seja por meio do desenvolvimento de biocombustíveis, seja pela eletrificação das frotas, o projeto global de descarbonização se apoia em metas cada vez mais ambiciosas, e uma das formas mais promissoras de adesão é a mistura de etanol na gasolina. Hoje, mais de 60 países já possuem mandatos de mistura em vigor e metas crescentes ao longo dos anos, sendo o Brasil o principal exemplo, com seus atuais 27% de anidro na gasolina e 14% de biodiesel no diesel. Isso sem contar o aumento da utilização dos biocombustíveis em outros setores também, como o da aviação.
Nesse contexto, existe um potencial de crescimento da demanda por etanol não apenas no cenário doméstico, como também global, e o Brasil, como segundo maior produtor mundial, deve desempenhar um papel determinante na oferta do biocombustível nas próximas décadas, com espaço garantido para aumento na produção, tanto a partir da cana, quanto de milho.
Além desse pano de fundo global, no âmbito local a demanda por biocombustíveis deve continuar crescendo. Podemos exemplificar o caso do etanol ao traçar um cenário conservador para a próxima década. Assumindo crescimento anual do consumo Ciclo Otto brasileiro de 1% e aumento de 1 ponto percentual ao ano na participação do hidratado nas vendas, temos um incremento de quase 10 bilhões de litros na demanda total por hidratado combustível ao longo de 10 anos.
Para fins de comparação, isso significaria uma média de vendas mensais no mercado interno pelas usinas do Centro-Sul perto de 2 bi L ao longo dos próximos 10 anos – versus 1,5 bi L nos últimos cinco anos. Além disso, não podemos ignorar o potencial aumento na mistura do anidro na gasolina, saindo dos atuais 27% para 30%, o que pode trazer um adicional de 1 bi L no consumo de anidro, bem como possibilidade de que a mistura cresça mais no futuro.
O aumento da participação do etanol hidratado no consumo de combustíveis no Brasil pode se justificar pelo avanço do Renovabio. Apesar de falhas no programa, as metas continuam aumentando ano a ano, com o objetivo de melhorar a competitividade do etanol frente à gasolina, por meio do repasse do custo das distribuidoras com a aquisição dos CBIOs para o preço do combustível fóssil.
Considerando que não existem planos de investimento suficientes para se esperar um grande potencial de crescimento na oferta de cana nos próximos anos, tem-se também um cenário de oferta limitada de ATR, cujo direcionamento para o açúcar ou etanol recairá, como sempre, sobre a arbitragem de preços entre os dois produtos. Mesmo com os investimentos recentes em aumento da capacidade de cristalização, o contexto promissor de demanda pelo biocombustível pode pesar do outro lado da balança.
Ao desenharmos um cenário de oferta pautado em moagem de 600 MMT, ATR médio de 140 kg/t e mix de 50%, teríamos uma oferta de etanol de cana orbitando ao redor de 24 bi L no Centro-Sul. Somando-se ao cenário de demanda descrito anteriormente e considerando a produção de etanol de milho da safra atual em cerca de 8,0 bi L, estamos falando de uma necessidade de produção adicional de etanol ao redor de 12 bi L, o que será um grande desafio, diante dos elevados preços do açúcar no mercado internacional atualmente.
Entendendo que o contexto global é favorável ao etanol no futuro, nos resta avaliar quais são as condições de oferta, isto é, se o produto originado do milho poderá, de fato, preencher esse espaço. O principal ponto a ser avaliado é a eficiência energética das usinas. A biomassa oriunda da cana torna as indústrias autossuficientes, além de possibilitar a muitas delas venderem a energia excedente, gerando uma relevante fonte extra de receita. O mesmo não pode ser afirmado para uma usina de etanol de milho, que necessita de uma fonte complementar de energia, tornando o processo menos eficiente nesse sentido. Essa característica (ou falta dela) das usinas movidas a milho se coloca hoje como a maior limitação no que toca à viabilidade de uma expansão exponencial destas plantas.
É claro que as usinas de etanol de milho têm também outras fontes de receita que contribuem com a margem de suas operações, como o DDG e o óleo de milho. Porém as margens podem ser comprimidas por redução do valor agregado do DDG conforme a oferta do mesmo cresce e pelo aumento de custo das fontes de energia utilizadas. E aí está o grande gargalo.
SAF: Novo mercado para o etanol a longo prazo: Pensando no longo prazo, destacamos também o crescente debate ao redor do SAF (sigla em inglês para Combustível Sustentável de Aviação), alternativa ao tradicional Querosene de Aviação (QAV). São diversos os tipos de SAF que podem substituir o QAV e eles se distinguem pela matéria-prima utilizada. Atualmente, a principal fonte de produção em escala do SAF é a partir do Hidrotratamento de Ésteres e Ácidos Graxos (HEFA), porém a limitação dessa matéria-prima diante da crescente demanda deve levar à utilização de novas fontes nos próximos anos, sendo uma das mais promissoras delas o ATJ (Alcohol-to-Jet) – o nosso etanol –, podendo chegar a uma taxa de mistura de até 50% no QAV.
Mesmo o Brasil sendo o principal potencial de oferta de ATJ, o projeto anda a passos lentos. Mas a intenção de desenvolver o setor já é discutida, inclusive mencionada no projeto de lei “Combustível do Futuro”. Apesar de ser uma tecnologia relativamente recente, que representa apenas cerca de 0,2% do consumo total de combustíveis aéreos no mundo, o SAF tem sido um dos principais focos nas discussões globais mais recentes sobre a descarbonização do setor aéreo e representa um enorme potencial para a acomodação da oferta de etanol brasileira.
O que esperar no futuro? Os cenários de demanda no longo prazo apontam para um contexto capaz de absorver uma oferta crescente de etanol de milho. Por outro lado, é preciso ponderar a capacidade do setor em proporcionar de fato esse crescimento, dada a limitação imposta pela falta de uma fonte própria de geração de energia, que pode oferecer um teto para o crescimento de novas plantas de etanol de milho.
Essa limitação pode ser contornada por investimentos em usinas flex, que associam a produção de etanol a partir da cana-de-açúcar e do milho. Isso contribuiria para resolver não apenas a questão energética, como também permitiria uma maior eficiência em geral das usinas de cana, com melhor aproveitamento de tempo, possível integração de processos, compartilhamento de infraestrutura e redução de custos. Isso ainda sem entrar na discussão do potencial do etanol 2G.
De toda forma, pode-se afirmar que o etanol de milho pode ser encarado como uma oportunidade para o setor e que esse cenário cada vez mais doce que vem se desenhando nos últimos anos deve oscilar no longo prazo, já que o contexto global de descarbonização pode voltar a colocar o etanol nos holofotes do mercado no futuro.