Coordenador do Centro de Agronegócio da FGV
Op-AA-31
Quando Barbosa Lima Sobrinho pensou num modelo de produção de cana-de-açúcar para o Brasil nos anos 40 do século passado, estava se adiantando quase duas décadas ao conceito de cadeia produtiva – “o agribusiness” – idealizado em Harvard por Ray Goldberg e seus colaboradores em 1957.
Foi esse brasileiro de notável visão estratégica que se deu conta da necessidade de distribuir os resultados dessa importante cadeia produtiva – hoje aqui chamada de sucroenergética – entre todos os seus agentes, reconhecendo o desequilíbrio entre o agricultor e a indústria, “pecado original” do setor.
Com efeito, é sabido que não existe mercado para cana: o produto é tão barato que sua exploração só se viabiliza se a área produtiva estiver a uma distância ao redor de 35 quilômetros da unidade industrial. Acima disso, o transporte da cana “esmaga” a rentabilidade agrícola eventual. Portanto, o produtor de cana autônomo só pode vender sua produção para “aquela” usina que estiver próxima. É claro que isso faz com que a relação entre produtor e usineiro seja desequilibrada.
O tema é tão conhecido que a palavra que designa o produtor autônomo de cana de açúcar é “fornecedor” de cana, não produtor: ele “fornece” suas canas para a Usina X. Mais do que isso, o verbo que caracteriza o negócio não é “vender”: o fornecedor não “vende” suas canas à usina, ele “entrega” a produção. Só essa etimologia já mostra o desequilíbrio da relação. Se o usineiro for correto, não há problema; mas, às vezes, apertado por circunstâncias, ele transfere seu aperto para o elo mais fraco da cadeia, o fornecedor. Dizem os antigos, referindo-se a isso: “quando a barriga está cheia, goiaba tem bicho”. Ou seja, quando tudo vai bem e falta cana, as relações são tranquilas, o preço da gramínea remunera; mas quando sobra a matéria-prima, instala-se um clima de guerra...
Sabendo disso tudo, Barbosa Lima Sobrinho estabeleceu regras claras, começando com quotas de produção: cada unidade industrial tinha autorização do antigo Instituto do Açúcar e do Álcool - IAA, para produzir determinada quantidade de açúcar e álcool, de acordo com a capacidade industrial instalada e com a produção de cana circunvizinha.
E era obrigado a receber de fornecedores cerca de 50% da cana processada. Com isso, havia distribuição de renda ao longo da cadeia e se criou uma classe média rural sólida.
Mas, para evitar que o mau pagador prejudicasse o produtor independente – o fornecedor –, os preços eram estabelecidos pelo governo a partir de estudos realizados pela FGV. Sob a supervisão do IAA, as coisas andavam até razoavelmente bem, embora com um nível de intervenção inaceitável para os tempos modernos.
Extinto o IAA pelo Plano Collor em março de 1990, os fornecedores ficaram órfãos, como se dizia. Lideranças dos dois setores criaram, então, um interessante modelo para remuneração da cana, através do Consecana: o preço da cana ficou atrelado aos preços dos produtos industriais.
Nada mais justo, se houver transparência nas informações, o que pode não ocorrer. Pois bem. Estamos na iminência de conhecer uma nova política para o setor, determinada pela presidente Dilma Rousseff. A total falta de estratégia levou a desastres para toda a cadeia produtiva, culminando com a necessidade de importar álcool de milho dos Estados Unidos, uma vergonha para o País.
A única lição que se tira desse desastre é que não se faz etanol sem cana. É na roça, na extraordinária relação entre o solo, a planta e o sol que se faz o álcool, que a usina separa do bagaço. Sem cana, não adianta ter indústria. Agora isso está aprendido: muitos projetos quebraram porque cuidaram da indústria e se esqueceram da cana.
Está na hora de colocar novos paradigmas nessa estratégia que vem vindo. E isso começa pela não intervenção, mas por algum tipo de arbitragem que dê transparência e credibilidade ao modelo do Consecana. E é indispensável reconhecer que vivemos outra realidade: o produtor de cana não vende mais apenas sacarose; vende o bagaço que se transforma em eletricidade, vende o restilo ou vinhoto ou vinhaça que vira adubo, vende os subprodutos todos da alcoolquímica que vem vindo, vigorosa.
Tudo isso tem que ser considerado nessa nova fase, em que muitos novos investidores do setor, não tradicionais, alheios à visão meramente patrimonialista do passado, sequer desejam produzir cana: só querem processá-la. São novos tempos, nos quais a produção de cana ganha a importância necessária, e seu produtor, o fornecedor, também. E, curiosamente, isso faz renascer o ideário de Barbosa Lima Sobrinho.