O desenvolvimento do setor bioenergético no Brasil vem sendo suportado por um avanço tecnológico constante ao longo dos últimos 50 anos, em todas as etapas de produção, desde a lavoura até a logística de distribuição e comercialização.
Agora a atenção das usinas se volta para a produção de biogás a partir da utilização da vinhaça, tanto de etanol de cana como de milho, e torta de filtro. Porém, de forma “espantosa”, não observamos no desenvolvimento e implantação deste processo o mesmo cuidado e atenção aos parâmetros tecnológicos de projeto, monitoramento, controle e gestão, em relação àqueles utilizados ao longo dos anos pelo setor, com boa eficiência e rentabilidade.
O projeto de um reator anaeróbio para produzir biogás utilizando vinhaça deve ser desenvolvido considerando as características (qualitativas/quantitativas) da vinhaça e as condições operacionais da usina, especialmente a safra e entressafras, condições diferentes daquelas observadas em processos de produção de biogás a partir de outros efluentes industriais e/ou urbanos.
A modelagem bioquímica do reator anaeróbio deve considerar os vários compostos orgânicos, além daqueles que compõem a vinhaça, presentes no meio de reação (recalcitrantes, substratos secundários), inclusive os gerados quando da morte das células de microrganismos (lise celular).
A utilização do Modelo ADM1 (IWA –Anaerobic Digestion Model Nº 1) com ajustes de parâmetros com o objetivo de incorporar o sinergismo/sintrofismo entre os microrganismos, identificados através de sequenciamento genético do lodo, no consumo de alimento (índice de codigestão) como variável dinâmica, e da redução de sulfato como possível fonte de ácidos orgânicos para as arqueias, fornece uma boa base para projetarmos um processo eficiente.
Os parâmetros adotados para o dimensionamento e design do reator anaeróbio devem ser aqueles exigidos para criar um ambiente (meio de reação) favorável para o desenvolvimento das arqueas metanogênicas, especialmente as acetoclásticas.
Considerando que o reator irá operar de forma contínua durante a safra, permanecendo sem alimentação durante a entressafras, devendo estar pronto para ser “reiniciado” no início da safra seguinte, na entressafra devemos manter no reator uma quantidade de lodo viável para iniciar a produção de metano no menor tempo possível quando do reinício na safra subsequente, evitando que ocorra um longo tempo de aclimatação dos microrganismos reduzindo a quantidade de metano produzida por safra.
O controle do pH, acidez e alcalinidade do meio de reação, fator primordial para o bom rendimento do processo, pode ser feito através da alcalinidade gerada no reator, pois ao longo das reações bioquímicas de transformação da matéria orgânica em metano, acidez e alcalinidade são produzidos e consumidos. Este processo de geração/consumo de alcalinidade deve ser considerado na modelagem bioquímica do reator.
A transformação em gases de compostos orgânicos presentes na vinhaça, associada à presença da manta de lodo, resulta no desenvolvimento de um modelo de escoamento turbulento de fluido não newtoniano (líquido e gases) em meio poroso (manta de lodo) no reator, e isto deve ser considerado no projeto, pois pode resultar na formação de fluxo preferencial de gases ao longo da manta de lodo, causar arraste de lodo e comprometer a eficiência do processo.
Deve ser instalado um sistema de separação de lodo e gases na corrente líquida de saída do reator (vinhaça biodigerida), reduzindo o arraste de pequenas bolhas de gases dissolvidas na corrente líquida, e consequentemente os riscos de incêndio, devido ao acúmulo de metano (CH4), e de acidentes envolvendo a dispersão do gás sulfídrico (H2S) na atmosfera próxima ao reator. Também devemos utilizar um sistema de filtração para retirada de partículas de lodo metanogênico em suspensão da vinhaça biodigerida, reduzindo o risco de aumento significativo da emissão de metano (CH4) no canavial.
Embora seja possível modelar-se um processo bioquímico de fermentação em estado sólido para produzir biogás utilizando a torta de filtro, os desafios mecânicos advindos dos fenômenos de transporte das fases sólida, líquida e gasosa resultantes do processamento in natura da torta recomendam que seja realizada a adição de líquido para obter-se uma mistura com menor teor de sólidos, e que permita seu processamento em reator anaeróbio de fase líquida.
A diluição da torta deve ser feita, preferencialmente, com vinhaça. Nos casos em que temos a operação conjunta de um reator para processamento de torta e outro de vinhaça na mesma usina, é recomendável que a diluição da torta seja realizada com a vinhaça biodigerida, principalmente devido à menor concentração de sulfato nesta vinhaça, o que resulta em menor concentração de H2S no meio de reação da torta. Outro benefício adicional é que a matéria orgânica residual presente na vinhaça biodigerida poderá elevar a produção de metano no reator processando torta de filtro.
O sistema de mistura utilizado deve ser alvo de atenção criteriosa, especialmente quando se utiliza a vinhaça bruta para a diluição. Devemos evitar a presença de partes mecânicas móveis no interior do reator, projetando-o para que a mistura seja realizada através da recirculação por bombas.
A gestão do processo de produção de biogás no reator, tanto no processamento de vinhaça como de torta, deve ser feita com base no monitoramento e controle de todas as fases, com a coleta de amostras em vários pontos para a realização de análises físico-químicas, microbiológicas e testes de Atividade Metanogênica Específica (AME).
As ações operacionais devem ser executadas com base na análise crítica do monitoramento analítico, e os procedimentos operacionais devem seguir as normas internacionais de certificação (ISO 9.001, 14.001, 18.001 e 24.001, etc.).
Ao observarmos a história do setor bioenergético brasileiro, vemos uma busca constante de aperfeiçoamento em direção à melhor eficiência de produção e rentabilidade econômica/financeira, muitas vezes através de processos inovativos, que nos colocou na dianteira tecnológica em relação a indústrias setoriais de muitos países ao redor do mundo.
Esta história de sucesso nos leva a afirmar que é possível produzir biogás a partir da utilização de vinhaça e torta de filtro, através de um processo produtivo que seja estável (varia dentro de limites aceitáveis e previstos em função das variações qualitativas e quantitativas das matérias-primas), robusto (tenha resistência a choques de carga e/ou variações bruscas dos processos da usina, especialmente uso de antibióticos), eficiente (tenha a conversão da matéria-prima (vinhaça/torta de filtro) em produto acabado (metano) com o maior rendimento possível) e economicamente viável (apresente uma excelente relação custo/benefício), e de modo seguro.
Basta “fazer direito”...