Diretor Geral da NRG Consultoria em Energia e Meio Ambiente
Op-AA-09
A indústria alcooleira, produtora de etanol independente da produção de açúcar, é um fenômeno recente no Brasil. Há menos de uma década, toda produção de etanol automotivo – anidro ou hidratado – era uma atividade derivada e dependente da produção de açúcar. E isso, apesar da existência de um robusto programa nacional de substituição parcial de gasolina automotiva, por adição ou por consumo cativo.
Mas, o etanol anidro está hoje, no mundo, a um passo de se tornar uma commodity, tendo já alcançado a escala de um centésimo do mercado mundial de gasolina automotiva. De imediato, o sucesso do etanol combustível deve-se muito mais ao comportamento do preço do petróleo e seus derivados, o que deverá permanecer pela próxima década – e com alta sensibilidade a conflitos bélicos nas regiões produtoras. Esses fatores tornam o etanol de cana-de-açúcar competitivo.
A longo prazo, entretanto, o crescimento do consumo de etanol na matriz mundial de combustíveis será impulsionado também por outros fatores. Em primeiro lugar, a necessidade de reduzir drasticamente as emissões de gases de efeito estufa. Não se pode esquecer que o Protocolo de Quioto é um passo extremamente tímido em direção ao objetivo de “estabilizar as concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera em níveis seguros”, preconizado pela Convenção Quadro das Mudanças Climáticas Globais.
Nas negociações dos acordos, pesa o fato de que a comunidade científica internacional, que assessora a Convenção – reunida no IPCC, Intergovernmental Pannel on Climate Change – acredita que uma redução da ordem de 60% nas emissões verificadas em 1990, seria necessária para a estabilização pretendida. O protocolo estabelece uma redução de 5,2 % destas emissões.
Para se reforçar essa posição da comunidade científica, verifica-se a intensificação dos fenômenos atmosféricos extremos, como os furacões e tufões, ondas de calor, enchentes e secas prolongadas. Nesse ambiente internacional, em que a redução do consumo de combustíveis fósseis é uma necessidade imperiosa, o etanol anidro tem um papel privilegiado.
Primeiro porque o consumo de combustíveis pelo setor de transportes é o que mais cresce em todo mundo, chegando a 50% do consumo de derivados de petróleo, nos países mais ricos da OECD. Nesse setor, o etanol permite uma transição das tecnologias atuais – baseadas nos motores ciclo Otto e ciclo Diesel, além das turbinas a gás – para as tecnologias mais eficientes, cuja introdução comercial deverá ocorrer num horizonte de mais de trinta anos.
Evidentemente, em um quadro internacional favorável à expansão da atividade alcooleira, o Brasil tem a oportunidade de aumentar sua produção e introduzir as tecnologias industriais e agrícolas já desenvolvidas. Entretanto, dada a escala do aumento já declarada e dos interesses multisetoriais envolvidos, será necessário que essa expansão seja negociada em escala nacional.
As estimativas mais otimistas falam na incorporação de 20 milhões de hectares de canaviais no Cerrado, em adição aos já existentes no Nordeste e Sudeste do país. É uma área, em principio, disponível, mas que preocupa pelo fato de restarem hoje apenas vinte por cento da área originalmente coberta por Cerrado. Essa negociação não está prevista no processo ordinário de licenciamento.
A rigor, no quadro legal atual, cada projeto deverá ser licenciado pelo órgão estadual de meio ambiente correspondente, inexistindo, para isso, uma matriz comum de avaliação de impactos ou resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente sobre o tratamento a ser dado aos empreendimentos. Evidentemente, uma alternativa é deixar as coisas como estão.
Mas, além de atrasar o licenciamento do conjunto, pode-se esperar que cada empreendimento será licenciado de acordo com a disponibilidade técnica no órgão ambiental local. O resultado final será então um conjunto de empreendimentos muito similares entre si, mas com licenças prévias, de instalação e operação distintas, embora os impactos que provocam possam ser muito semelhantes e, provavelmente, localizadas em uma mesma bacia hidrográfica.
Ao invés desse imobilismo, traduzido na aplicação burocrática da norma, a melhor alternativa seria buscar uma negociação setorial, partindo-se de uma avaliação conjunta dos impactos previstos sobre os ecossistemas locais e nacionais, do conjunto dos empreendimentos propostos para a expansão da produção de cana e do parque de usinas e destilarias.
Nesse processo, pode-se, de um lado, melhorar os levantamentos da situação vigente nos ecossistemas que seriam impactados pelos empreendimentos – para além dos tradicionais levantamentos existentes nos EIA Rimas, que, via de regra, se repetem ou se reproduzem – e, de outro, formular compromissos coletivos que efetivamente previnam, mitiguem e compensem os danos e comprometimentos ambientais trazidos pelos empreendimentos.
Além dos aspectos propriamente ambientais, essa negociação coletiva ou setorial poderia estender-se para outras áreas de interesse público e nacional. Uma delas diz respeito à produção de eletricidade. Com as melhores tecnologias de geração termoelétrica hoje disponíveis, o aumento proposto no parque industrial poderia resultar na adição de quase uma dezena de Gigawatts médios, que representa um montante necessário e considerável para o setor elétrico brasileiro.
Por outro lado, as novas tecnologias de produção de etanol a partir da biomassa eliminam o bagaço, além das pontas e folhas, como o combustível de baixo valor (custo de oportunidade), que hoje alimenta os sistemas de cogeração das usinas. Isso significa que, num futuro não tão distante, o setor alcooleiro passará, gradativamente, de ofertante potencial de energia cogerada – situação evitada, quando a tarifa não remunera a geração em excesso ao consumo próprio – a consumidores cativos de eletricidade da rede.
A menos, é claro, que o preço pago pela eletricidade cogerada fosse maior que a renda obtida pela indústria com a venda do etanol. Situação possível, mas pouco provável. Esses e outros fatores, relacionados aos desenvolvimentos tecnológicos de áreas tão distintas como biocombustíveis para o setor de transportes, geração distribuída de eletricidade, células a combustível, papel e celulose, biopolímeros e outros, tornam a negociação proposta um imperativo. Não se trata apenas de um punhado de indústrias produtoras de álcool retirado da cana. É todo um universo de possibilidades, em troca de boa parte de um dos mais belos ecossistemas brasileiros.