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Antonio Donato Nobre

Cientista da Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia - LBA

Op-AA-10

Vinte bilhões de toneladas de água são evaporadas na Amazônia, a cada dia. Existe alguma dúvida da sua importância para o mundo?

Três anos atrás, preocupados com a “pegada” de carbono fóssil, produzida por nosso carro movido à gasolina, instalamos um kit de conversão flex-fuel, que permite “enganar” a injeção eletrônica, fazendo o carro pensar que está queimando sempre o combustível original, quando a mistura no tanque pode variar do mesmo modo que num flex puro sangue. Rodando com o combustível verde, sentimos, a princípio, um enorme alívio de nossa consciência ambiental.

O motor não funcionava tão bem em cidade, requerendo longos períodos de aquecimento, antes de girar redondo, mas funcionava de modo perfeito em estrada. Estivemos queimando álcool quase puro por uns 3 ou 4 meses, até que um dia, na esteira do sucesso internacional da experiência brasileira com o sistema flex-fuel, e também por ocasião do estardalhaço no lançamento do programa de biodiesel, escutamos, em um documentário na TV, a expressão: “o Brasil será a Arábia Saudita dos biocombustíveis!”

Depois de fazermos algumas contas, concluímos que, dada as tecnologias de motores existentes hoje, toda a superfície cultivável do País não seria suficiente para substituir o equivalente de petróleo produzido pela Arábia Saudita. A implicação direta de um crescimento forte de demanda para biocombustíveis, como se espera em função da piora do aquecimento global, será aniquilação certa dos ecossistemas naturais remanescentes no País, pela expansão das plantações agroenergéticas.

Não há necessidade de uma bola de cristal para se prever que haverá uma enorme pressão para a substituição das florestas da Amazônia, e mesmo o restinho que sobrou do cerrado, por imensos plantios homogêneos de agroenergéticos. Os exemplos históricos da pecuária e da agricultura, avançando sobre a Mata Atlântica, e mais recentemente, sobre a Amazônia, não deixam dúvida da força colonizadora do setor primário. E no discurso da maioria dos formadores de opinião, a expansão da fronteira agropecuária sobre florestas representa um mal necessário, um subproduto inevitável do desenvolvimento.

Contudo, pesquisas aprofundadas, feitas em uma variedade de disciplinas, nos últimos dez anos, têm revelado conexões espetaculares entre as florestas e o ciclo hidrológico no continente sulamericano. Para uma compreensão rápida, basta mencionar que toda a região da bacia do Prata (centro oeste, sudeste e sul do Brasil, norte da Argentina, Paraguai e baixo da Bolívia), onde se produz mais de 70% do PIB do continente, encontra-se no chamado cinturão planetário dos desertos.

No hemisfério sul, temos os desertos de Atacama, a oeste dos Andes, Namíbia e Kalahari na África e o enorme deserto da Austrália, todos alinhados na mesma faixa, em torno dos 30º de latitude. A mesma geografia repete-se no hemisfério norte. Estes desertos resultam de células de circulação atmosféricas que formam correias transportadoras de umidade. Onde o ar sobe, produz zonas chuvosas, onde ele desce, surgem desertos.

A exceção representada pelo úmido e verdejante centro-sul da América do Sul, a leste dos Andes, tem duas explicações, já amplamente aceitas na comunidade científica: a alta cordilheira dos Andes barra, a oeste, os ventos úmidos que sopram do Atlântico tropical sobre a Amazônia, defletindo-os e forçando-os a levar umidade, no verão, para a bacia do Prata; e a própria floresta Amazônica, um oceano verde de dimensões continentais, que mantém completamente úmidas as massas de ar em trânsito nos rios de vapor atmosféricos.

Não fossem os dois efeitos casados, o coração do Mercosul muito provavelmente comporia mais um dos desertos na banda árida. E para reforçar esta compreensão sobre a importância das florestas, estudos recentíssimos sugerem que o continuado desmatamento, em curso na Amazônia, já pode ser responsabilizado por efeitos assustadores: secas no centro-oeste, sul e sudeste, seca na Amazônia e intensificação de furacões no Caribe.

Como a floresta é responsável por um poderoso efeito de ascensão de ar, devido à transpiração das árvores (20 bilhões de toneladas de água são evaporadas na Amazônia, a cada dia, absorvendo, no processo, uma energia proveniente da luz solar, de monta equivalente a 135 anos de funcionamento de Itaipu, a plena carga!), sua remoção representa o desligamento de motores, na correia transportadora de umidade.

Isto leva à diminuição do efeito de resfriamento do Atlântico, favorecendo o aumento na freqüência e intensidade de furacões e o surgimento de correntes ascendentes anômalas sobre o oceano, que vêm a descer na Amazônia, causando secas, como a vista em 2005. Por último, a perturbação na poderosa interação da floresta com o vapor de água atmosférico e seu transporte do Atlântico, açaba também por prejudicar o transporte posterior de umidade para o centro-sul da América do sul.

Isso posto, chegamos à conclusão óbvia de que sem o insumo água, nem hidroenergia, nem alimentos ou agroenergéticos podem ser produzidos. Portanto, a conexão pode ser já estabelecida com sólidas bases científicas de que tanto o setor do agro-negócio, quanto o setor hidroenegético, para um sucesso duradouro, dependem umbilicalmente da floresta Amazônica.

Proteger a floresta deixa, assim, de ser capricho de ambienta-listas, e passa a ser um requerimento vital para a atividade produtiva. Um agroecossistema nunca substituirá florestas nativas, em sua função reguladora no ciclo hidrológico e no clima de larga escala. Portanto, urge, não somente proteger as florestas, mas valorizá-las, replantá-las e, com isso, garantir, entre muitos outros valiosos benefícios, o suprimento ilimitado do insumo mais valioso: a água.

Mas então, dada a limitação de área cultivável fora da zona de florestas, como fazer para suprir os biocombustíveis nos volumes que o mercado eventualmente demandará? Sem uma abordagem em termos de evolução tecnológica, esta tende a ser uma equação sem respostas. Precisamos urgentemente evoluir os motores. Citando apenas uma tecnologia, muito badalada nos USA, a célula de combustível que utiliza etanol como fonte de hidrogênio pode aumentar a eficiência de conversão da energia química para cinética, dos normais 20%, do motor à combustão interna, para mais de 90% (via energia elétrica).

Com estes ou tantos outros eficientes conversores de energia, podemos agregar valor ao biocombustível, ou seja, vender de fato toda a energia que carrega em si, mas cuja maior parte é dissipada como calor nos motores convencionais, diminuindo assim a necessidade de vastíssimas áreas plantadas. Um litro de álcool ou de biodiesel, que valha mais de cinco vezes o valor atual, vai gerar uma verticalização inteligente e sofisticação, jamais vista na produção. Não é segredo que os Norte Americanos estão investindo pesado no desenvolvimento do álcool celulósico, a partir de processos biológicos, como a transferência do código genético da celulase encontrável nas bactérias de rumem (ou de cupins), para as leveduras alcoólicas.

Portanto, o aumento espetacular na eficiência de conversão de biomassa em combustível líquido, associado ao aumento espetacular da eficiência na conversão de combustível líquido em movimento nos veículos, será o binômio que terá o dom de compatibilizar os requerimentos legítimos de bioenergéticos líquidos, com os requerimentos essenciais e sinequa non de recuperação e manutenção das florestas.

Garantir a integridade do processo, que gera abundância de água na América do Sul, é sinônimo de garantir, num ciclo virtuoso, a produção de bioenergéticos. Expansão cega de canaviais, sem os avanços tecnológicos e com destruição de florestas e outros ecossistemas naturais, críticos no suprimento dos insumos ambientais, como ainda faz hoje a pecuária e a soja, será o definitivo tiro-no-pé do próprio desenvolvimento, pois nenhuma planta cresce sem água...