Economista-Chefe do ABC Brasil Arab Banking
Op-AA-19
O mundo mudou. Não estou falando diretamente sobre a crise financeira que estamos passando. Desde meados da década de 90, o desenvolvimento tecnológico, principalmente a internet, tem propiciado às pessoas e aos mercados uma interação on-line, que foi a base de sustentação do movimento de globalização que explodiu no raiar do século XXI.
Com isso, a planificação do mundo, nos moldes do livro do jornalista Thomas J. Friedman, tornou-se possível, com as suas vantagens e desvantagens. No primeiro caso, tivemos um notável crescimento da renda, gerado pela expansão sem precedentes do comércio, que tirou milhões de habitantes do planeta da miséria.
Do lado dos efeitos colaterais, a interatividade entre os mercados e das economias ao redor do mundo deixou um plantador de arroz nos arredores de Bangkok exposto à inadimplência da hipoteca de um desempregado de Cleveland. Portanto, não deveria causar surpresa que a crise financeira internacional tenha batido em nossas praias. Entretanto, apesar de ter sido ingênuo achar que essa seria apenas uma marolinha, também não se esperava que nos atingisse com a força de uma tsunami.
O catalisador desse movimento foi a quebra da Lehman Brothers, em 15 de setembro. Certamente, a crise não começou aí, mas foi a partir desse acontecimento que as coisas precipitaram-se. Era como um incêndio que estava relativamente controlado, que iria gerar prejuízos, mas totalmente gerenciáveis, e de repente atingiu uma sala repleta de produtos inflamáveis, tornando as chamas incontroláveis e os danos incalculáveis.
Dessa forma, podemos considerar o evento Lehman Brothers como sendo o divisor de águas dessa crise, não só para o Brasil, como para todo o mundo. O mercado financeiro é montado em cima da confiança, de modo que qualquer abalo nesse ativo tem o poder de corroer os alicerces do sistema. Portanto, a partir da quebra do 4º maior banco de investimentos dos EUA, passamos a jogar o “jogo do mico preto”, onde todos têm receio de passar a carta adiante, com medo ficar com o mico preto no final.
Nesse clima, o mercado “trava” e o nome do jogo passa a ser “liquidez”. Aqui temos o ponto de contato entre a crise externa e o nosso mercado. Sem o fluxo de financiamento externo, anteriormente abundante e barato, as premissas que sustentavam o nível de apreciação do Real foram rompidas e tivemos o “movimento clássico” de transferência dos problemas externos para a nossa economia, a desvalorização cambial.
Esse movimento acabou gerando a versão tupiniquim do “jogo do mico preto”. Com as perdas das empresas com derivativos cambiais, o crédito secou também internamente e o “jogo da liquidez” passou a ser jogado também no mercado de crédito brasileiro. Daí para entrar em um circulo vicioso, onde a restrição de crédito gera problemas de gerenciamento de caixa das empresas, aumentando a inadimplência, o que, no fim, acaba aumentando a restrição de crédito, foi um pulo.
Essa é a situação atual, o que esperar daqui para frente? Do lado internacional, não devemos ter novidades favoráveis. Apesar de ser lugar comum, não se tem notícia de uma crise dessa proporção, desde os anos 30. Só de baixas contábeis, já chegamos a mais de US$ 1 trilhão, sendo que a capitalização total situa-se em torno de US$ 970 bilhões.
Nesse mundo de cifras estratosféricas, pouco mais de US$ 30 bilhões de perdas pode não ser muito, mas considerando uma alavancagem média de mercado em torno de 20 vezes (na Lehman Brothers e no Bear Sterns esse cálculo passava de 30 vezes), isso representa uma contração de crédito de US$ 700 bilhões, praticamente 50% do PIB brasileiro.
Segundo o FMI, não estamos nem na metade do movimento, que poderá chegar a US$ 2,2 trilhões, assim, se não tivermos capitalizações dessa monta, podemos considerar que boa parte do sistema financeiro mundial está à beira da insolvência. O resultado é que o crédito continuará escasso e devemos continuar a ouvir notícias sobre novas formas de lidar com essa situação, que vão desde a criação de um BBB (Big Bad Bank), para limpar a carteira dos bancos dos ativos, até a total nacionalização do sistema.
Enquanto lá fora ainda devemos demorar a ver uma luz no fim do túnel, aqui, o que era visto como fraquezas do sistema no passado, agora são ativos importantes para que a volta à normalidade ocorra de maneira mais rápida. O primeiro ponto a se destacar é que a crise pegou o Brasil com R$ 260 bilhões de compulsórios bancários.
Antes da crise, isso era visto como um anacronismo, mas acabou aumentando o leque de opções à disposição do BC para lidar com a crise de liquidez internacional, evitando que essa se tornasse uma crise de solvência nacional. Mesmo com todos os movimentos feitos até agora pela Autoridade Monetária, gastou-se apenas R$ 90 bilhões desse montante, 35% do total, de modo que ainda temos espaço para aumentar a liquidez do sistema, caso seja necessário.
O segundo ponto seria a concentração do sistema. As 5 maiores instituições brasileiras controlam mais de 55% dos ativos, o que favorece a solidez do sistema, através da escala das instituições. Por fim, a existência de bancos públicos, se bem utilizados, pode ser um fator importante para manter o sistema de crédito funcionando, enquanto o “jogo da liquidez” não tiver chegado ao seu termo.
Portanto, podemos dizer que a crise de solvência que abate o setor bancário internacional, não deve achar guarida aqui no Brasil. Entretanto, se isso é condição necessária para que o mercado de crédito volte a funcionar a contento, certamente não é suficiente. O círculo vicioso acima citado, para ser rompido, teria que ter a ajuda de uma melhoria das condições de crédito externas e/ou de uma recuperação da economia mundial.
Como nenhuma das duas hipóteses é vislumbrada no horizonte, temos que o crédito interno, mesmo que volte ao volume anterior, consideração não só possível, mas bastante provável, continuará caro. Para isso, contribuirá um efeito colateral do nosso círculo vicioso, a inadimplência. Os resultados dessa variável, sejam coletados pelo BC, pela Serasa ou pelo SPC, mostraram crescimento em dezembro, um mês em que normalmente se vê redução, uma vez que os trabalhadores aproveitam o 13º salário para quitar dívidas.
Por isso, os bancos preparam-se para um 1º trimestre difícil em termos de inadimplência, dado que, sazonalmente, o pico desta ocorre em março. O reflexo disso dá-se sobre o spread bancário, que seria a diferença entre o custo de captação da instituição e a taxa para o consumidor final, e que tem suscitado grandes discussões ultimamente.
De fato, segundo os mais recentes dados divulgados pelo BC, enquanto o custo de captação dos bancos caiu de 13,8% a.a., em julho de 2008, para 12,6% a.a., em dezembro do mesmo ano, o spread passou de 25,6 p.p., para 30,6 p.p., no mesmo período. Considerando que o spread é composto pelos impostos, que não foram alterados, despesas administrativas, que não tiveram motivos para aumentar, a inadimplência e o lucro retido, um dos dois últimos foram responsáveis por esse movimento.
Como o último, não temos como mensurar nesse momento, a maior especulação recai sobre a inadimplência. Os dados comprovam. Entre setembro e dezembro de 2008, essa taxa passou de 4,0% para 4,4%. Pode parecer pouco, mas é bastante relevante para um período em que esta deveria estar recuando e com a perspectiva de que ainda vai piorar mais.
Portanto, não devemos esperar quedas expressivas nos juros cobrados pelo mercado, mesmo com a esperada redução dos juros básicos da economia pelo BC, ao longo do 1º semestre de 2009. Pelo menos no curto prazo, boa parte dessa redução será consumida pela elevação da inadimplência e o seu reflexo sobre o spread bancário.
Certamente, essa situação não é ideal nem para o setor produtivo, nem para o setor bancário, mas é um reflexo da conjuntura atual. Nesse sentido, tentativas de pressionar os bancos para reduzir as taxas a fórceps estão fadadas ao fracasso. Como em qualquer mercado, se o mercado de crédito for restringido pelo preço, o ajuste vai se dar na quantidade.
O melhor, portanto, é continuar a reduzir tanto os juros básicos, quanto os compulsórios, para contrabalançar esse aumento inevitável do spread, devido à inadimplência. A conclusão é que estamos passando pelo pior momento da crise para o Brasil, que está sendo refletida em uma redução tanto no crédito, quanto no nível de atividade maior do que vai prevalecer no novo equilíbrio.
Apesar disso não ser consolo para as empresas que estão passando por problemas de caixa agora, a tendência é que o mercado de crédito volte a operar normalmente ao longo do primeiro semestre desse ano, só que a um custo relativo mais alto, ou seja, as quedas dos juros promovidas pelo BC não serão totalmente repassadas para os preços finais do crédito... Bem vindos ao novo mundo.