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Marie-Anne Van Sluys

Professora do Instituto de Biociências do Departamento de Botânica da USP

Op-AA-17

Desafios da genômica em cana-de-açúcar

A planta de cana, que conhecemos ao longo de nossas rodovias no Brasil afora, é produto do cruzamento e posterior seleção entre duas espécies vegetais. A espécie Saccharum officinarum é aquela que contribui com a informação genética/genômica, que resulta na produção de grande quantidade de açúcar. Saccharum spontaneum, a outra espécie parental, contribui com a informação genética/genômica presente em genes que conferem tolerância a estresses diversos e resistência a doenças.

A cana, juntamente com trigo, cevada, arroz e outros grãos, acompanhou os seres humanos quando, progressivamente, deixaram de ser nômades, nos primórdios da agricultura. Acredita-se que a cana tenha tido origem na ilha Papua, Nova Guiné, por volta de 7.000 a.C. Posteriormente, entre 2.000 e 3.000 a.C., foi levada e domesticada para a China e a Índia.

As variedades de cana cultivadas no mundo, que são usadas para a produção de açúcar, etanol e destilados, são produtos de cruzamentos obtidos há aproximadamente 100 anos. Uma particularidade do plantio é que se parte de toletes, caracterizando uma propagação vegetativa, e não de sementes, como no caso de milho e soja.

A princípio, este método de propagação implica que boa parte das variedades recentes teriam certa semelhança genética entre si. No entanto, para aumentar a complexidade, além da planta de cana ser um híbrido resultante da mistura do genoma de duas espécies, a cana é também um organismo poliplóide. Isto significa que no caso da cana, cada gene apresenta em torno de 10 versões (alelos) diferentes.

A título de exemplo, o ser humano apresenta duas versões de cada gene, uma que vem do pai e a outra que vem da mãe. Como nós, seres humanos, o genoma híbrido das plantas de cana, como de todas as plantas e seres vivos, é constituído da molécula universal da vida, o DNA. A molécula de DNA é constituída por 4 letras, que se alternam em uma seqüência linear, formando, no seu conjunto, o genoma.

Se todos os organismos compartilham da molécula de DNA, que armazena a informação genética de cada uma, como os seres humanos podem ser tão diferentes das plantas ou de uma bactéria? A genômica é a área da ciência responsável por determinar o código genético de uma espécie, ou seja, a seqüência da molécula de DNA. Um projeto genoma pode determinar as partes que representam apenas os genes expressos ou então o genoma por inteiro de um organismo.

A diferença entre uma e outra abordagem está em que o primeiro gera uma lista de genes presentes no organismo, e o segundo permite identificar as regiões do genoma que determinam quando e onde o gene identificado será expresso. Com o desenvolvimento da genômica, é possível estimar o número dos genes e predizer que funções estes determinam. Parte das diferenças entre os seres vivos reside no número de genes, tipo de função e o modo como essa informação é controlada, harmonizando o crescimento e o desenvolvimento de um ser vivo.

Uma comparação interessante a ser feita refere-se ao tamanho dos genomas entre nós, seres humanos, plantas de milho, plantas de cana e bactérias, por exemplo, a Xylella fastidiosa, que causa o amarelinho nos pomares de laranja. As diferenças genéticas/genômicas entre estes organismos estão, entre outras, contidas no tamanho do genoma de cada espécie, em número de bases que constituem a molécula de DNA. Por exemplo, o genoma do ser humano é constituído por 3.000 milhões de pares bases (3.000 Mb), enquanto o milho apresenta 2.500 milhões de pares de base (2.500 Mb).

O arroz tem 430 Mb, enquanto a cana apresenta 10.000 Mb. Existiria uma correlação entre tamanho do genoma e complexidade do organismo? A resposta imediata é não, quando somos colocados na comparação. Nesse contexto, de que modo então sequenciar partes do genoma de cana e como esta informação poderia contribuir com o melhoramento genético e com a produção agrícola, assim como auxiliar no ganho de eficiência que possa indiretamente beneficiar o meio ambiente?

O Brasil tem seu papel reconhecido como contribuidor para o incremento do conhecimento na área. Em particular, com relação à cana, o programa Sucest (ONSA-Fapesp) permitiu a identificação de 43.141 genes potenciais. Desse conjunto de genes, verificou-se que cerca de 80% são compartilhados com arroz e outros 13,5% apresentam função desconhecida.

Agora, o desafio é entender como a cana, com tantos genes compartilhados com arroz, acumula açúcar no colmo, enquanto o arroz produz amido que acumula no grão. O projeto do sequenciamento, que se iniciará no próximo semestre, pretende determinar a seqüência da molécula de DNA de 1.000 regiões escolhidas a dedo, por conterem genes de interesse agronômico ou fundamentais para a biologia e adaptação da planta.

Isto permitirá que seja estabelecida uma plataforma de análise, para posterior sequenciamento quase completo de uma variedade modelo e de variedades de interesse nacional ou regional. Será possível, a partir do sequenciamento destas regiões, ampliar a base de conhecimento das regiões regulatórias dos genes que determinam que o açúcar acumule-se no colmo ou que as folhas de cana apresentem quantidades variáveis de fibras. No genoma de cana há porções de DNA repetidas, sem função aparente.

Diversas dessas regiões foram denominadas inicialmente de DNA lixo e atualmente algumas delas estão sendo reconhecidas como os locais que determinam variações evolutivas importantes entre espécies, inclusive por determinarem padrões específicos de expressão, em redes regulatórias. Uma analogia bastante simplificada seria o controle do tráfico em um cruzamento, onde cada carro seria um gene, cuja expressão dependeria da abertura do semáforo, para permitir sua passagem.

Cada cruzamento terá um tempo, um fluxo e um conjunto de carros específicos. A combinatória de todos determinaria o perfil do trânsito a cada momento do dia, ao longo do ano. Nossa expectativa é definir as redes regulatórias, o conjunto dos genes e os agentes repetitivos que determinam o que nós conhecemos como cana-de-açúcar.