Os leitores da Revista Opiniões já sabem que o nosso País é, já há muito tempo, o campeão mundial da substituição de petróleo na mobilidade, especialmente para os motores do Ciclo Otto, aqueles originalmente a gasolina e que hoje podem usar etanol ou gasolina na frota flex.
A história desta substituição e o sucesso do Programa que lhe deu o início, o Proálcool, porém, são menos conhecidos. O Proálcool começou como um decreto de 1975 que visava, de forma emergencial, responder ao grande Choque do Petróleo de 1973, quando o seu preço aumentou drasticamente e o Brasil importava 75% das suas necessidades deste importante insumo. Houve racionamento,
fechamento de postos aos fins de semana, enormes filas, uma situação terrível.
A ideia na época era rapidamente aumentar a produção de etanol (então chamado de álcool) e colocá-lo à disposição dos consumidores, de início com a sua mistura à gasolina e depois com o desenvolvimento acelerado dos “carros a álcool” reabastecidos em todos os postos de combustível do País.
Os planejadores sabiam que a tecnologia da produção do etanol no Brasil a partir de cana já era madura, pois já éramos, na época (como hoje), grandes produtores de açúcar de cana, tendo havido inclusive programas governamentais de modernização das usinas (Funproçúcar). O melaço gerado nesta produção já era aproveitado para fazer etanol e, inclusive, já era misturado de forma não sistemática na gasolina quando havia falhas de fornecimento do combustível importado. Esta prática vinha pelo menos desde os anos 20 do século passado.
Mesmo antes do Proálcool, principalmente em Piracicaba-SP, já tínhamos muita pesquisa e formação de pessoal para as usinas na Esalq-USP, sob a liderança do professor Jayme Rocha de Almeida e, posteriormente, dos professores Urgel de Almeida Lima e José Paulo Stupiello, havendo inclusive plantas-piloto para o desenvolvimento do processo de fermentação e destilação desde 1950.
Na Escola Politécnica da USP, um pouco depois, o professor Walter Borzani estudou aspectos fundamentais da engenharia dos processos de fermentação e formou uma legião de pesquisadores e engenheiros especializados. Portanto, um dos fatores de sucesso do Proálcool foi incentivar uma tecnologia já bem conhecida e operada em escala real, porém com enorme potencial de evolução.
Há basicamente dois fatores fundamentais para permitir a substituição de um combustível fóssil: escala e preço. A produção em escala só é possível, repito, se o processo já está minimamente maduro, ou seja, se os principais problemas e desafios do processamento já foram equacionados, tais como uma cadeia de fornecimentos (de matérias-primas, insumos, energia, água e destinação de efluentes) que funciona continuamente e a longo-prazo apesar das intempéries, há demanda (e competição) para os produtos e os investimentos em equipamentos e instalações e os custos de produção são compatíveis com os preços de venda.
O fator escala implica também positivamente na viabilidade do empreendimento, pois quanto maior a produção maior será a diluição dos custos fixos e do capital. Menores custos permitem vender mais a menores preços e sustentar o negócio, além de possibilitar a geração de lucro que permite investir na melhoria do processo (na escala real) com melhor conhecimento das causas dos problemas.
O aumento de escala após o Proálcool foi brutal. Nos 50 anos do Proálcool, aumentamos a produção de 600 milhões de litros de etanol por ano para mais de 30 bilhões, coincidentemente 50 vezes em 50 anos.

E ao mesmo tempo que aumentávamos a produção, o custo caía e deixamos de ter qualquer subsídio ou “proteção” governamental logo após o fim do IAA – Instituto do Açúcar e do Álcool, em 1990. Com isso, a produção de etanol, ou melhor o sistema bioenergético de processamento da cana, deixou de ser uma política pública para ser efetivamente um negócio, que evolui como muitos outros.
Cito por exemplo eletrodomésticos como geladeiras, TVs, máquinas de lavar ou carros particulares que poucos tinham nos anos 1940 e hoje temos praticamente em todas as famílias; também telefones, hoje celulares, e computadores que ninguém tinha antes dos anos 1990 e agora temos no Brasil mais de um aparelho per capita. Como se explica estes enormes sucessos? Escala e queda de preços, além de competição e a existência de um mercado consumidor.
Implícito no aumento de escala, além das políticas públicas (como o Proálcool e recentemente o RenovaBio), está a existência de uma inteligência que tornou possível enfrentar os desafios da inovação, da engenharia e do crescimento do mercado, ou seja, o aumento do uso dos produtos. Por exemplo, os celulares de início eram apenas para fazer ligações telefônicas e agora são mais poderosos do que qualquer computador de 10-15 anos atrás. Novas funcionalidades, novos consumidores aptos a pagar o preço.
Já citei que o Proálcool previa o uso extensivo do etanol substituindo a gasolina, porém, apesar do início da produção do biocombustível nos anos 20 do século passado e o primeiro mandato em 1931, ainda não existia a produção em escala de motores capazes de usar só etanol, apesar de já se saber que este composto era muito melhor para motores a combustão do que qualquer fração do petróleo.
Foram alguns professores e inventores como o professor Urbano Ernesto Stumpf que, no CTA (Centro Técnico Aeroespacial) do ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica), mostrou a partir de 1973 que era possível desenvolver motores a álcool a partir das bases de produção já instaladas no Brasil e que estes poderiam ter eficiência e durabilidade suficientes para serem produzidos em escala.
Estes estudos permitiram que rapidamente as montadoras lançassem o famoso carro a álcool que foi substituído pelos carros atuais flex. Sem consumidores, não haveria como aumentar a escala de produção. Descrevemos agora como a inteligência no processamento da cana permitiu o aumento de escala e a redução de custos.
Em artigos anteriores publicados na Revista Opiniões, mostrei que, entre 1979 e 2010, o preço do etanol pago aos produtores caiu 3
vezes enquanto a produção aumentou 40 vezes. Isso caracteriza uma típica “curva de aprendizado” (publicada pelo professor José Goldemberg, da USP-SP), de forma semelhante ao que aconteceu com os produtos citados anteriormente com outras soluções energéticas, como captação e energia solar, em que o Brasil tem posição de destaque mundial. Como foi possível esta dramática redução de custos?
Como os leitores sabem, o custo da matéria-prima (cana) é o principal fator de custo dos produtos da Usina (ficando entre 65 e 75%) e, de fato, a produção de açúcar por hectare e por ano na lavoura aumentou no período muito próximo a três vezes, ou seja, um aumento de quase 100% na produtividade da cana (toneladas por hectare e por ano) e aumento de 50% no teor de açúcares da cana.
Como as usinas conseguiram absorver toda esta quantidade de açúcar sem jogar fora todo o esforço de produção no campo? E ainda tendo de aproveitar toda a base instalada de usinas já existentes e toda a base de produção de equipamentos industriais de grande porte com capacidade de entrega para atingir as metas de produção?
Não tivemos de inventar uma nova Rocket Science nem financiar um projeto Manhattan para ganhar a guerra (a bomba atômica) ou um Programa Apollo para colocar o homem na lua, coisa que aliás não teríamos a menor condição de fazer. Mas fizemos a substituição da gasolina muito antes dos americanos e do mundo.
Primeiro, a “boca” que mastiga a cana, a moenda, teve de dobrar de tamanho, ao mesmo tempo em que teve de ficar mais eficiente, tanto em retirar todo o açúcar da cana (que aumentou 50%) como em ter capacidade volumétrica de processar o dobro de cana (gerando o dobro de caldo e o dobro de bagaço) sem exigir mais energia (vapor e eletricidade) do que aquela disponível no bagaço, cuja geração, aliás, também teve de dobrar sua capacidade.
A Inteligência aqui veio em parte do CTC – Centro de Tecnologia Copersucar, entidade privada que chegou a ter 1.600 técnicos, especialistas em todos os aspectos da produção de cana e do seu processamento e que pensavam juntos em soluções para o mundo real, soluções para serem implantadas nas usinas, tanto as cooperadas como até as não cooperadas. A execução e implementação dos projetos desenvolvidos às minucias de centenas ou milhares de desenhos e tabelas de cálculo (feitos sem computador) foram feitas pela indústria de equipamentos principalmente a Dedini de Piracicaba-SP e depois por outras empresas de Sertãozinho-SP que se transformou num polo de equipamentos e soluções.
Segundo, o que fazer com o dobro do caldo (e o dobro de bagaço, como já citado)? Primeiro, veio a ideia de juntar sinergicamente a destilaria com a produção de açúcar, ou seja, mandar caldo para a fermentação em conjunto com um mel menos esgotado, facilitando muito a fermentação e aumentando a capacidade da fábrica e a qualidade do açúcar (sem ter de reciclar tanto melaço) e economizando energia para processar a cana. Muitas soluções de tratamento de caldo e de aquecimento, resfriamento, evaporação, filtração, bombeamento e armazenamento foram projetadas, melhoradas na prática e implantadas em escala.
A fermentação praticamente reduziu o tempo de fermentação à metade (lembram, o dobro do açúcar chegando na usina?) e aumentou o teor alcoólico em 50% (lembram, 50% mais açúcar na cana?). As colunas de destilação dobraram a sua capacidade (para um mesmo diâmetro, o dobro da vazão) e reduziram o uso de vapor e de água, permitindo fechar o circuito de reuso da água, reduzindo a captação.
A vazão de vinhaça foi reduzida em no mínimo 50% (devido ao aumento do teor alcoólico) o que viabilizou o seu bombeamento de volta à lavoura com ganhos de produtividade e redução de fertilizantes. A melhoria na qualidade do mosto (mistura de um mel mais rico com caldo de cana) bem como um melhor controle do processo (de temperatura e de centrifugação e tratamento de fermento) permitiram aumento significativo do rendimento fermentativo e, portanto, da Eficiência Industrial, com redução de custos.
Em resumo, menores custos tanto de CAPEX como de OPEX permitiram enormes aumentos de capacidade, possibilitando, principalmente, vender mais etanol (e açúcar e eletricidade) mais baratos e com margens significativas, praticamente em qualquer situação ou conjuntura climática ou econômica pelo que passamos nestes 50 anos.
Se esta foi a evolução até aqui, o que temos pela frente?
Um dos problemas da nossa produção é a sazonalidade, ou seja, as usinas têm de processar a cana fresca (e limpa e madura), e isso só pode ocorrer no período mais seco, onde as máquinas conseguem cortar e transportar a cana. Isso se dá por 200-240 dias por ano, com a usina ficando sem produção e em manutenção nos outros 120-160 dias. Isso é um grande problema econômico e estratégico, pois o etanol tem de ser vendido de forma competitiva com a gasolina o ano todo.
Uma solução é acoplar à usina de cana um outro processamento, de uma matéria-prima armazenável, como o grão de milho (rico em amido, contendo por quilo muito mais açúcar do que a cana e muito menos fibra).
Como o grão de milho não traz fibra para queimar, a usina de cana que foi otimizada para usar o mínimo possível de bagaço pode fornecer energia o ano todo, para os dois processamentos, reduzindo o custo da produção de etanol de milho e fornecendo etanol (e coprodutos valiosos) o ano todo.
Consigo imaginar ainda outros acoplamentos, disputando o uso do açúcar (ou da biomassa integral) da cana (e do milho) e o uso do excesso de energia. Seria possível produzir, além do etanol, açúcar e coprodutos, outros biocombustíveis mais intensivos em energia do que o etanol, como o biocombustível de aviação ou SAF (do inglês: Sustainable Aviation Fuel)
A cana pode ser facilmente “melhorada” para trazer mais fibra (bagaço), com aumentos significativos de produtividade agrícola com variedades mais ricas em fibra e com a mesma tonelagem de açúcares por hectare e por ano.
Embora se gaste mais na moagem, incentivos à produção de SAF, como houve no início do Proálcool, poderão cobrir os custos adicionais até que se ligue a nova curva de aprendizado, e os custos e gastos de energia do SAF cairiam com a maturidade atingida. Para isso, precisaríamos de um “ProSAF” e de muito mais pesquisa aplicada por aqui, coisas que não temos, ainda.
Há ainda a possibilidade de outros acoplamentos como a integração de captação solar com a lavoura de cana, promovendo um sombreamento parcial, que, embora possa reduzir um pouco a produtividade, permitirá mais do que dobrar a eletricidade gerada por hectare e ano, energia essa que pode ser usada na produção dos outros biocombustíveis ou vendida para a rede.
O pequeno sombreamento reduz a necessidade de evapotranspiração e ajuda a manter matéria-orgânica no solo, pela redução de picos de temperatura e aumento de umidade. As placas são colocadas bem acima do dossel, permitindo todas as operações agrícolas sem obstáculos, e a evaporação da água permite reduzir a temperatura das placas com aumento de eficiência e durabilidade.
A limpeza automática das placas poderá ser considerada como uma irrigação, paga pela geração de eletricidade renovável. Para compensar a possível perda de produtividade, pelo menos em áreas mais próximas da usina, pode-se usar uma fertirrigação complementar com o CO2 da fermentação (FACE – “Free Air CO2 Enrichment”), aumentando o teor deste composto nas folhas, o que deve aumentar a taxa de fotossíntese, aumentar as raízes e promover o crescimento da cultura mesmo com o sombreamento.
Finalmente, se pensarmos no novo sistema bionergético com acoplamentos com outras culturas, fontes de energia sustentáveis e com o aproveitamento econômico de todas as frações da cana e os resíduos (para, por exemplo, produção de biogás/biometano para a frota própria), podemos acoplar também a produção intensiva de proteína animal usando os coprodutos do milho (DDG ou WDG) e o esterco gerado, passando pelo biodigestor para fornecer energia para a usina e matéria-orgânica estabilizada para a lavoura.
Tenho ainda de citar a implantação acelerada de outra inteligência desta vez “artificial”, ou seja, o uso de máquinas capazes de aprender e agir no mundo real. Isso já está acontecendo agora com o uso de sensores avançados como os baseados em NIR on-line (infravermelho próximo) capazes de analisar qualquer substância relevante e gerar dados analíticos de alta qualidade e baixo custo, gerando bancos de dados que, em conjunto com os sistemas de monitoramento e controle atuais, permitem a captura e entendimento do processo integral, da lavoura aos produtos e aos reciclos, permitindo controles automáticos avançados com aumentos significativos de eficiência global (mais rendimentos por hectare e por ano) e soluções de processo que ainda nem conseguimos visualizar totalmente.
Com isso, atingiremos uma circularidade economicamente viável, nossa riqueza vinda do Sol e da Terra, com reposição de tudo o que extraímos.