Falar sobre biocombustível no Brasil não é novidade. Potencializado pela crise do petróleo na década de 1970, o Proálcool iniciou uma importante transformação cultural e econômica do País rumo à descarbonização da matriz energética e ao fomento do uso de combustíveis renováveis nos transportes terrestres, criando uma indústria robusta e estratégica para o agronegócio nacional.
Apesar disso, não é exagero dizer que os últimos dois anos talvez tenham sido os mais importantes na rota de consolidação do Brasil como o case de maior sucesso no mundo. Pelo menos no aspecto regulatório. E é isso que queremos e precisamos mostrar: a força da nossa bioeconomia e o protagonismo brasileiro na transição energética global.
Em uma época de latente divergência entre os Poderes Executivo e Legislativo federais, a agenda dos biocombustíveis parece ter sido um importante ponto de convergência, em que a aprovação sequencial de marcos regulatórios transformadores colocou o Brasil em outro patamar. Isso demonstra a nossa capacidade em criar consensos em torno de pautas estratégicas e de longo prazo. Mesmo que isso não seja tão usual quanto gostaríamos.
A publicação de leis como a Lei do Combustível do Futuro, o Paten, o Mover, dentre outras, trouxe diretrizes e mecanismos que visam promover soluções e incentivos para toda a cadeia de produção e utilização de biocombustíveis, beneficiando diretamente o produtor rural, a indústria sucroenergética e a sociedade como um todo.
A implementação de mandatos para incentivar a demanda, a previsão de programas específicos para produção de hidrogênio, SAF (Sustainable Aviation Fuel) e CCS (Carbon Capture and Storage), além da criação de mecanismos alternativos de financiamento de projetos de tecnologia limpa com a utilização de créditos fiscais e incentivos à produção de automóveis sustentáveis movidos a combustíveis de baixo carbono, são exemplos dos tópicos abordados por tais regulações.
Segundo dados da ANP (Agência Nacional do Petróleo), somente o incremento de 3% do etanol na mistura da gasolina, previsto pela Lei do Combustível do Futuro, gerará uma demanda de mais de 1,4 bilhão de litros de etanol. Uma estatística rápida para ilustrar o potencial transformador de políticas públicas bem estruturadas.
Como brasileiro, reconhecer essas conquistas é fundamental — mas ser reconhecido por outros países é transformador. Nos últimos meses, tive a oportunidade de acompanhar algumas agendas e eventos internacionais em que o case brasileiro foi apresentado e referenciado. Ficou evidente que o Brasil está na vanguarda da estruturação de políticas públicas que fomentam o uso de biocombustíveis como solução simples, sustentável, disponível e efetiva para a descarbonização. E estamos em um momento de ganhar mais força.
Já testemunhamos a tendência de um consenso global em que a eletrificação e o hidrogênio não serão as únicas respostas para a descarbonização do planeta. Obviamente, essas soluções ainda são bastante defendidas por países que não terão condições (nem espaço) para a produção em escala de carbono biogênico de fontes sustentáveis, mas está cada vez mais evidente que não existe bala de prata.
A palavra-chave é diversidade. Diversidade de tecnologias e de rotas de produção. Diversidade no reconhecimento dos potenciais regionais e de fontes de matérias-primas. E, nisso, o Brasil pode sair na frente.
Contudo, a jornada é longa e sinuosa. Além de todos os desafios domésticos, que envolvem a regulamentação dos marcos regulatórios e a criação de um ambiente de negócios mais favorável e atrativo a investidores (mas que não será o foco deste artigo), o potencial brasileiro de se consolidar como líder da transição energética e provedor de matérias-primas e tecnologias sustentáveis para descarbonização do planeta esbarra em uma série de obstáculos quando falamos de acesso ao mercado internacional.
Não é de hoje que barreiras não tarifárias impõem duras limitações à nossa exportação de biocombustíveis. Mesmo que às vezes pareça injusto, desconstruir a narrativa da produção agrícola causadora de desmatamento de biomas sensíveis é parte constante da nossa missão internacional. De forma geral, a discussão sobre segurança energética global e a proliferação de iniciativas regulatórias internacionais com foco na descarbonização têm ocupado boa parte da agenda institucional das empresas do setor.
Revisões de políticas da EPA (Environmental Protection Agency) e do IRA (Inflation Reduction Act) nos EUA, a discussão de normas europeias em andamento no Parlamento Europeu e o debate aquecido em infindáveis fóruns e iniciativas empresariais, políticas e técnicas mundo afora têm mantido nosso alerta ligado e provocado o Brasil a se estruturar internamente, reforçando a necessidade de maior alinhamento setorial e uma robusta comunicação com as instituições de governo que representam o País globalmente. Este é um esforço contínuo que demanda a união de todo o agronegócio e suas representações.
E não adianta só falarmos. Temos de investir em pesquisa e em tecnologias de mensuração da sustentabilidade dos nossos sistemas produtivos. Precisamos provar que a pegada de carbono da produção de nossos biocombustíveis é diferenciada. Precisamos agregar os aspectos socioeconômicos (geração de emprego, incremento de renda etc.) do setor à equação. Precisamos nos apoiar em instituições e organismos reconhecidos internacionalmente que nos auxiliem a atestar tudo isso.
Esse é um caminho fundamental, por exemplo, para avançarmos nas discussões dentro da ICAO (International Civil Aviation Organization) e da IMO (International Maritime Organization). Atualmente, essas instituições estão pautando duas das mais importantes discussões sobre descarbonização global, envolvendo os setores de aviação civil e transporte marítimo.
A batalha travada nos fóruns técnicos é inglória, e o suporte de dados técnicos sólidos e concretos é imperativo para a construção de narrativas mais favoráveis. Quando olhamos para as barreiras tarifárias (e colocando o cenário atual da relação com os EUA em outro capítulo), não há dúvida das enormes oportunidades de aprofundarmos em acordos bilaterais com potenciais mercados consumidores. Nos últimos meses, realizamos uma série de agendas com embaixadas e adidos agrícolas de países da África e da Ásia e pudemos dimensionar um pouco mais o tamanho do mercado que o Brasil perde por termos um etanol que sofre tarifas de até 30% na importação por outros países.
Enquanto nosso maior concorrente (EUA) goza de um domínio de mercado pautado por tarifas reduzidas (ou até zeradas) em diversas regiões, o etanol brasileiro não consegue alcançar alguns mercados — mesmo tendo atributos ambientais mais favoráveis e atingindo um preço mais competitivo quando o carbono é contabilizado. É claro que a matemática não é tão simples. Acordos pautados em agendas que extrapolam a promoção comercial — e a evidente diferenciação de incentivos nas cadeias produtivas dos dois países — precisam ser considerados. Mas, sem dúvida, o setor merece um olhar mais criterioso e atuante em relação a esse cenário.
A lição de casa é extensa, mas possível. Se, por um lado, o Brasil tem-se tornado referência na formulação de políticas públicas que incentivam o uso de biocombustíveis, por outro, enfrentamos forte resistência no acesso a mercados e no reconhecimento de nossos atributos ambientais. Vivemos um movimento crescente que reforça a importância de buscarmos internamente uma agenda convergente entre os diferentes segmentos e tecnologias. Independentemente da matéria-prima, o Brasil precisa encontrar seu discurso único, que coloque o termo “biocombustíveis brasileiros” em primeiro lugar e expresse a sustentabilidade dos sistemas produtivos como uma característica nacional.