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Roberto Isao Kishinami

Diretor Geral da NRG Consultoria em Energia e Meio Ambiente

Op-AA-14

O diálogo iniciado entre Governo e Setor tem que continuar num Fórum Permanente

Em 1998, há quase 10 anos, eu participava da segunda edição do Fórum Internacional sobre o Futuro do Álcool e me lembro muito bem qual era a discussão do setor na época e qual era a minha motivação para dele participar. Naquele ano, esse setor já vivia uma antevisão do que seria a sua crise mais profunda. Naquela época, eu tinha um motivo que me perseguia há alguns anos.

Desde 1989, eu vinha acompanhando as negociações internacionais que levariam, anos mais tarde, à Convenção Internacional do Clima. No ano anterior aquele Fórum, em 1997, havia sido estabelecido o Protocolo de Kyoto, que era e ainda é, na verdade, a primeira tentativa para produzir uma redução concertada e acordada pelo mundo inteiro, nas emissões dos gases de efeito estufa.

Já estava claro que o setor de combustíveis líquidos era um setor que crescia muito. O consumo de diesel e gasolina, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, era o que mais preocupava. Na época, a China ainda não era esse grande fenômeno, como é hoje tão conhecido, com suas termoelétricas a carvão. Então, quando vim a Sertãozinho, para participar do Fórum, tinha como objetivo passar toda essa preocupação: havia uma convenção internacional firmada no Rio de Janeiro, em 1992; 5 anos depois havia, em 1997, a primeira tentativa de alcançar a redução e, estava claro, que o etanol, principalmente de cana-de-açúcar, tinha seu papel nessa redução, ou seja, nesse esforço internacional para mitigar as mudanças climáticas globais.

Eu me sentia frustrado, porque toda vez que se falava de etanol, nestas reuniões, no exterior, ninguém entre meus colegas dava muito crédito para o fato de que o Brasil tinha uma produção significativa de etanol, que substituía um quinto do volume consumido de gasolina. Em 1998, este assunto não era nem conhecido, nem reconhecido. Nessa época, eu fazia parte, como Diretor para o Brasil, de uma organização ambientalista internacional, o Greenpeace, a qual assessoro ainda hoje, e tinha participado de praticamente todas as reuniões internacionais sobre as mudanças climáticas globais.

Mas, como já disse, o etanol não fazia parte das alternativas seriamente consideradas, para a substituição dos combustíveis fósseis. Bastava alguém lembrar as acusações de trabalho escravo, poluição de rios por vinhaça, poluição do ar por queimada dos canaviais, para que ele fosse descartado. Além disso, o próprio setor não fazia nenhuma divulgação, em escala internacional, das conquistas da produção de etanol a partir da cana-de-açúcar, e foi essa mensagem que eu trouxe ao Fórum, naquele ano. Uma cobrança para que o setor se organizasse e passasse a divulgar o etanol nos fóruns internacionais sobre as mudanças climáticas globais.

Também havia uma outra cobrança, de âmbito nacional. Naquele ano, ainda estávamos com uma campanha, em todo o território brasileiro, para preservar e avançar com a implementação do Código Florestal. O debate era acalorado porque, de um lado, a bancada ruralista no Congresso pretendia derrubar a ampliação da Reserva Legal para o Cerrado e para a Amazônia, chegando a propor a simples extinção dessas áreas.

De outro, todas as entidades ambientalistas do país defendiam a ampliação do conceito. No fim, prevalece até hoje a ampliação introduzida pelo governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, através de Medida Provisória, posteriormente aprovada pelo Congresso. Passados, então, quase 10 anos, eu acho que podemos dizer, que hoje a situação é bem diferente.

Primeiro, o etanol está reconhecido internacionalmente e nisso, acho que teve um papel muito grande o nosso Presidente Lula, que realmente abraçou o etanol e os biocombustíveis, mais do que como um simples produto, mas como objeto de um grande orgulho nacional, e como algo que o Brasil quer compartilhar com o resto do mundo. Essa já é uma mudança muito grande.

Agora, acredito que, junto com essa mudança no cenário internacional, já é tempo de superarmos, definitivamente, alguns dos problemas que temos aqui, com a implementação, por exemplo, da Reserva Legal. Existem muitas opções para essa implementação. Não é o caso de detalhá-las aqui, mas há vários mecanismos – juridicamente bem fundamentados – de localizá-las extra-propriedade.

Se bem conduzidas, essas áreas de reserva legal podem ajudar a recompor a mata nativa no Estado, importantíssima para a recuperação da nossa biodiversidade. Eu diria que as Áreas de Preservação Permanente, as APPs, estão melhor resolvidas pela opção da mecanização, uma vez que as máquinas não podem entrar nas margens de córregos e rios.

Por isso, essas áreas estão sendo deixadas, por questões operacionais, para recomposição, como mata nativa. Além disso, ou por isso, há um comprometimento maior dos dirigentes e funcionários das usinas, com a recomposição da mata nativa nas APPs, principalmente, de matas ciliares. Mas, a Reserva Legal continua sendo, particularmente no estado de São Paulo, um item de debate e acho que temos que avançar para além da retórica.

Temos que colocar na mesa todas as alternativas de compensação, de criação de fundos e outras várias idéias já estudadas. Está na hora de as implementar. Do ponto de vista ambiental, acho que essas questões florestais – Reserva Legal e APPs – pertencem a uma agenda da década passada. A questão atual é água e ela tem a ver, muito fortemente, com a vinhaça.

Estamos no início de várias mudanças estruturais no setor, particularmente na produção de etanol, com expansão da produção de cana-de-açúcar e da instalação de novas usinas, tanto em direção ao noroeste do estado de São Paulo, como das áreas de Cerrado nos estados vizinhos. Nessa expansão, uma limitação óbvia que deverá se manifestar muito fortemente é a disponibilidade de água.

Quando se olha para as regiões de expansão, percebe-se que existe muita água nos grandes rios das bacias amazônica, do Pantanal e do Paraná. Entretanto, essa disponibilidade não se dá com a mesma capilaridade que se verifica, por exemplo, na Bacia do Rio Tietê. Isso significa que, diferentemente do que ocorre em São Paulo, essas novas usinas, em instalação no Cerrado, terão dificuldades para repetir os padrões de uso e consumo industrial de água das usinas mais antigas.

Mas, no meu entender, essa limitação representa muito mais uma oportunidade do que um obstáculo ou um fator de crise. E esse entendimento passa pelo conhecimento das formas disponíveis de tratamento da vinhaça. São possíveis diferentes vias para superar essa limitação de água e alcançar um nível de sustentabilidade mais elevado no processamento da cana-de-açúcar. Uma delas consiste no reaproveitamento da água que hoje compõe a vinhaça.

Todos aqui sabem que mais da metade do peso da cana crua consiste em água. Essa água é, na sua maior parte, carregada para dentro do processo de fermentação, através do caldo. A partir daí, ela resulta na vinhaça, através das linhas de produção de açúcar e álcool. Uma das formas de reaproveitar essa água dá-se pela fermentação anaeróbica da vinhaça – com produção de biogás, que aumenta a geração de eletricidade – e posterior separação físico-química do potássio e outros sais.

Essa é apenas uma possibilidade. Cada situação particular vai exigir uma solução diferente. Mas, qualquer que seja a alternativa adotada pode-se, com certeza, assumir que o tratamento atual, dado à vinhaça, pela fertirrigação é muito menos atrativo nas regiões de expansão, inclusive pela maior acidez do solo, e tem seus dias contados, mesmo nas regiões onde tem sido praticada, nas últimas duas décadas.

Mas, na mesma medida em que o etanol da cana-de-açúcar é, hoje, melhor conhecido internacionalmente, é preciso levar em conta que ele é objeto de uma forte competição comercial, nessa mesma área internacional. As críticas ao etanol produzido no Brasil, a partir da cana-de-açúcar, continuarão a ser alimentadas nos países do hemisfério Norte, principalmente porque elas são a única forma de contrabalançar a sua enorme competitividade.

Nesses tempos em que o petróleo está sempre acima dos setenta dólares o barril, em que o etanol do milho chega às distribuidoras nos Estados Unidos a quase cem dólares o barril equivalente, apesar de todos os subsídios que recebe, e o etanol da beterraba não chega por menos de oitenta dólares o barril equivalente, com subsídios ainda maiores, é compreensível que o etanol da cana, que chega às distribuidoras a menos de cinqüenta dólares o barril equivalente, tenha que ser criticado, nos seus aspectos ambientais e sociais.

Parte das críticas tem fundamento e devem ser respondidas por ações concretas, não por retórica. E eu diria que essas respostas devem ser mostradas, não aos competidores, mas aos potenciais consumidores do etanol pelo mundo afora, às pessoas, cidadãos e cidadãs de qualquer país que, conscientemente, se preocupam com o combustível que consomem, porque já entenderam que isso é também parte do problema das mudanças climáticas globais.

Finalmente, gostaria de reforçar que as respostas não podem ser dadas de uma maneira fragmentada, com o governo e as empresas agindo desconectadamente. Nesse caso, ou há uma resposta do país, com o governo e o setor trabalhando juntos, ou a mensagem não conseguirá ser formada e não chegará às pessoas que podem e precisam ouvi-la. Há uma grande necessidade de um diálogo entre o governo e o setor, que começa nesse Fórum, mas que tem de continuar de uma maneira muito aberta e franca, pelos próximos meses e, provavelmente, anos, no interesse do país e das gerações futuras.