Com certa frequência nos deparamos com expressões que definem a agricultura como: "indústria a céu aberto". Claro que compreendemos isso dentro da ótica de que produzimos com alta vulnerabilidade em relação não apenas a fatores como mercado, política e crises, mas operando com variáveis imprevisíveis, como o clima, pragas e doenças.
Ao direcionar nossa atenção à produção de cana-de-açúcar, temos uma das culturas mais emblemáticas do Brasil, sendo uma das principais fontes de produção de energia renovável no mundo. No entanto, o setor bioenergético, vital para a economia brasileira, enfrenta uma série de desafios agronômicos, especialmente em um cenário de mudanças climáticas intensificadas.
Obviamente, a irregularidade do regime de chuvas, apresentando anos com períodos mais prolongados de seca e até mesmo sucedidos por chuvas intensas e concentradas, impacta de diversas formas
as operações e fatalmente gera instabilidade
e imprevisibilidade na produção ano a ano. O fato é que o ciclo El Niño, La Niña e neutralidade se tornou assunto comum em nosso cotidiano, assim como o consenso de sua total “não linearidade”.
Contextualizado o cenário, aqui cabem algumas reflexões importantes. É um fato que fenômenos climáticos sempre estiveram presentes em nossa realidade de produção. Muitos profissionais experientes do setor, assim como pequenos produtores, lembram-se facilmente de anos muito chuvosos e de anos em que a seca foi agudamente predominante, além de outros eventos como os de geada e fogo.
Os impactos são muito expressivos, por isso tornam essas ocorrências muito marcantes em nosso cotidiano. Entretanto, avaliando o momento e os últimos ciclos, o que nos parece dissonante é que a alternância entre a quantidade de safras de regimes
climáticos regulares em detrimento de anos
com climas extremos tem sido muito mais desproporcional do que no nosso passado conhecido. Temos vivenciado com mais frequência safras com regimes tendencialmente secos e muito quentes, impactando diretamente a produção de cana.
Uma segunda reflexão é que as mudanças climáticas anteriormente citadas nos levam a rememorar dois importantes movimentos de produção ocorridos nos últimos anos, muito bem pautados nas agendas de aumento de demanda: necessidade de expansão e redução de custos fixos, este último sendo vital para sobrevivência no mercado de commodities.
Os dois movimentos que discutiremos mais adiante são o de expansão de produção para áreas com condições edafoclimáticas de menor aptidão para cultivo de cana e o de extensão do período de moagem das usinas.
Um primeiro fator sensível é o de que os períodos de moagem das safras são cada vez mais extensos. Quanto a isso, existem benefícios competitivos relevantes, porém, analisando pelo aspecto agronômico, temos nos meses extremos da safra atividades mecanizadas concomitantes a períodos chuvosos, o que intensifica o adensamento e compactação do solo, reduzindo a capacidade da planta em desenvolver raízes e, não menos importante, atrasando a “rebrota” da soqueira pós corte. Outro ponto de demasiado impacto para a produtividade agrícola é que safras mais longas expõem o canavial a praticamente todo o período de maior estresse hídrico, consequentemente reduzindo a produtividade para os ciclos seguintes, sobretudo dos canaviais de fim de safra.
A segunda pauta que temos que rememorar é que estamos muito mais suscetíveis à perda de produtividade em anos mais secos, pela mudança de perfil das áreas cultivadas no centro-sul do Brasil. Essa tendência ocorre devido à baixa disponibilidade de áreas, que concorrem com outras culturas agrícolas e com expansões urbanas.
O fato é que o canavial passa a incorporar áreas de solos muito menos férteis, muitas vezes derivados de sedimentos arenoquartzosos, cuja principal característica é sua alta permeabilidade e consequente baixa capacidade de retenção de agua, fator pelo qual sua expectativa de produção é mais singela e seu desempenho é muito prejudicado em anos de irregularidade pluviométrica.
Mas o que deve ser feito?
Primeiramente, ações na raiz das mudanças climáticas são, sim, de responsabilidade de todos, entretanto, salvo o respeito, fóruns de discussões, legislações, ações ambientais e programas de compromisso, que já estão em curso e que devemos observar, cumprir e fomentar a cada dia, nada será totalmente efetivo. Portanto, neste momento, direciono minhas opiniões àquilo que está definitivamente materializado e realizado em campo, lançando mão de uma tônica de que precisamos continuamente rever e melhorar aquilo que está sob nosso controle.
O fato é que a constante busca por maior produtividade e longevidade dos canaviais exige experimentação, ciência, tecnologia e inovações incrementais para lidarmos com questões complexas relacionadas ao clima, fisiologia vegetal, pragas, doenças e técnicas de manejo. Se as mudanças climáticas vêm alterando o padrão de temperatura e precipitação, criando novos desafios, a resposta deve ser estratégica e em várias linhas de enfrentamento.
A irrigação como ferramenta de equilíbrio: Diante das oscilações climáticas, a irrigação, antes pouco difundida na cultura de cana no Brasil, porém relativamente comum em outras culturas, surge como uma ferramenta praticamente essencial para equilibrar a produção de cana-de-açúcar.
A prática, quando em modelo de irrigação “deficitária”, permite que os canaviais mantenham um nível adequado de água, reduzindo ou eliminando o déficit hídrico, onde se cria um ambiente estável para o desenvolvimento da planta. No entanto, sistemas de irrigação de alta eficiência ainda exigem altos investimentos em implementação, tecnologia e operacionalização.
Outro modelo de irrigação que vem se tornando muito popular no setor é o que chamamos de “irrigação de salvamento”, método no qual temos um consumo de água direcionado à preservação de perfilhos da soqueira de cana recentemente cortada. O efeito de emular uma chuva poucos dias após a colheita permite uma qualidade de rebrota muito proeminente, e, com isso, a planta desenvolve vigor, o que pode diminuir os efeitos de doenças e pragas. Os resultados de irrigação de salvamento são obviamente variáveis de acordo com região, área, clima e manejo. Em linhas gerais é uma tecnologia de investimento relevante, porém com expressivos resultados.
Manejo varietal e usos biológicos e nutricionais para mitigação de impactos: Observar o comportamento da planta é um excelente caminho para compreensão dos impactos climáticos. Definir muito bem o perfil varietal mais adequado para cada particularidade, aspectos climatológicos da microrregião, regime atual de chuvas, solos e outros fatores internos e externos são pontos fundamentais para que se construa um canavial de menor suscetibilidade às adversidades climáticas.
A crescente escalada do uso de produtos biológicos na produção de cana-de-açúcar tem apresentado respostas eficazes para os desafios agronômicos impostos pelas mudanças climáticas, associados a pacotes de aminoácidos e de micronutrientes. Têm-se consolidado no setor as expressões “pré-seca” e “pós-seca”, em que basicamente temos, dentre os benefícios, ativação de enzimas antioxidantes, atuação na capacidade de hidratação foliar, estimulantes de fotossíntese, estímulo hormonal para crescimento vegetativo e sínteses de proteínas para estabilização metabólica. Em linhas gerais, disponibilizamos para a planta ferramentas para que ela adquira a capacidade de adiar os efeitos da seca, sem perder potencial de produção de sacarose, e, ao final do período de déficit hídrico, o canavial retorne ao ciclo vegetativo de forma mais breve e vigorosa possível.
Correção de perfil e regeneração de solos: Fundamental para produção agrícola, o solo necessita de equilíbrio físico-químico-biológico. Nesse ponto, existem infinitas linhas de pesquisa, entretanto, no tocante à mitigação de impactos climáticos, todo o manejo que potencializar a produção de raízes nas plantas impacta diretamente sua capacidade de busca e retenção de umidade. Nesse aspecto, práticas muito simples e cotidianas como calagem e gessagem voltam aos ambientes acadêmicos, visando expandir sua eficiência. O clima tornou-se mais desafiador, consequentemente os manejos necessitam de inovação e tecnologia para avanço na busca por produtividade. Ainda nesse tema, a agricultura regenerativa surge também com diversas vertentes, a exemplo o uso de fertilizantes organominerais e a sucessão de culturas utilizando diferentes espécies de plantas de cobertura. Ambos os casos têm como fator preponderante a regeneração biológica do solo, com aumento de matéria orgânica, e sua atividade enzimática viabilizará um perfil muito mais fértil.
Monitoramento e big data: O uso de big data na agricultura possibilita a análise de grandes volumes de dados sobre clima,
solo, produção e colheita. Atuamos em um setor centenário, em que o volume de informações estruturadas é gigantesco. Ainda somos um pouco carentes de ferramentas de análise que ajudam de forma plena nas tomadas de decisão, mas o fato é que muitas respostas para melhoria de produtividade e mitigação de riscos climáticos estão contidas em nossos bancos de dados, aguardando serem traduzidas para ações práticas.
Conclusões e capital humano: Como citamos, a produção de cana-de-açúcar no Brasil enfrenta um conjunto de desafios agronômicos que exige inovação constante e adaptação aos novos cenários climáticos.
As ações devem estar pautadas e combinadas em todas as áreas da agroindústria, sendo essenciais o planejamento, a gestão, a pesquisa, a experimentação e a contínua busca por novas tecnologias de manejo e de produção. Todos os itens devem visar a sustentabilidade e a produtividade.
Historicamente, neste setor, nenhum objetivo é alcançado sem que haja inovação e preparação técnica, acadêmica e comportamental. Em cenários desafiadores como o que temos vivenciado na produção de cana, definitivamente o que vai diferenciar o êxito das ações e a capacidade de atravessar momentos desfavoráveis são as pessoas e suas habilidades em atuar com equilíbrio, desempenho, qualidade e visão sistêmica e orientada à sustentabilidade do negócio. Definitivamente, nada será tão eficaz frente a qualquer tipo de adversidade do que um time de gestão com pessoas muito bem comprometidas e capacitadas.