A Indústria 4.0 avança com vigor no setor sucroenergético, impulsionada pela necessidade de eficiência, integração e uso inteligente dos dados. Mais que uma revolução tecnológica, trata-se de uma transformação cultural que conecta máquinas, pessoas e decisões em tempo real — redefinindo a forma como as usinas operam e se relacionam com o campo.
O desafio da conectividade no campo: Historicamente, o campo sempre representou o elo mais desafiador da cadeia de conectividade. Nos últimos anos, porém, o cenário vem se transformando. A chegada da internet às máquinas agrícolas permitiu avanços expressivos em telemetria, automação e rastreabilidade. Ainda assim, a conectividade rural segue como gargalo, sobretudo em regiões afastadas. Acredito que o campo tenha avançado mais rapidamente na adoção da Indústria 4.0 justamente por partir de uma base mais defasada — mas ainda há longo caminho até que a informação flua com a velocidade exigida pelo processo industrial.
Como apontam Michel-Horta e Giraud-Herrera (2025), a agroindústria da cana-de-açúcar ainda se encontra em estágios iniciais de maturidade digital. Entre as soluções mais promissoras estão os sistemas automatizados de irrigação e os pivôs conectados, que reduzem o impacto das variações climáticas e elevam a produtividade de forma sustentável. Solidificar a conectividade no campo, portanto, é condição indispensável para a consolidação da digitalização. Molin (2024) ressalta que as tecnologias voltadas à mecanização da cana ainda enfrentam restrições de conectividade, cultura e escala.
Integração entre o campo e a indústria: Um dos pilares centrais da Indústria 4.0 é a integração efetiva entre as áreas agrícola e industrial. Quando o fluxo de dados é contínuo, a usina pode se antecipar: conhecer previamente o tipo de cana que será colhida, ajustar as receitas industriais e planejar o processamento com maior precisão.
É essencial que a indústria saiba o que virá do campo antes que o caminhão chegue. Essa sincronia evita perdas de tempo, eleva o rendimento e reduz custos operacionais.
Dados, memória e inteligência industrial: A gestão inteligente dos dados é o coração dessa transformação. A análise e o cruzamento de informações históricas permitem decisões operacionais e estratégicas muito mais assertivas.
Temos hoje um acervo valioso de dados que, muitas vezes, é subutilizado. Problemas já solucionados no passado retornam simplesmente por falta de registro. Essa “memória industrial” é um ativo estratégico: evita reincidência de falhas, aprimora o planejamento e assegura a continuidade dos aprendizados.
Análise histórica inteligente: Muitos problemas atuais, que acontecem dentro da área industrial, já aconteceram no passado e foram corrigidos através do uso de novas tecnologias e novos materiais, e, mesmo assim, às vezes eles voltam a acontecer — muito devido à dificuldade de rastreabilidade e cruzamento dessas informações históricas. A ausência dessa memória analítica nos faz desperdiçar tempo, recursos e conhecimento.
Desafios e condicionantes da transformação digital: Apesar dos avanços, a jornada da digitalização ainda enfrenta obstáculos relevantes. Identifico quatro pilares críticos: infraestrutura, investimento, cultura e mensuração de resultados. Em um cenário de margens comprimidas e preços voláteis, justificar investimentos em tecnologia exige clareza quanto ao retorno. Mesmo que a produção cresça, a rentabilidade pode não acompanhar. A tecnologia, portanto, deixou de ser uma opção para se tornar condição de sobrevivência competitiva.
Além disso, é imprescindível desenvolver uma nova relação das equipes com os dados — aprender a interpretá-los e transformá-los em decisões práticas. O treinamento e a capacitação assumem papel estratégico nesse processo, preparando profissionais para atuar em ambientes altamente digitalizados e analíticos.
O futuro da integração total: Visualizo o futuro da Indústria 4.0 no setor sucroenergético como uma integração total entre dados agrícolas e industriais — uma “usina única”, com decisões em tempo real e fluxos de informação contínuos. Podemos observar um paralelo com a indústria do etanol de milho, que opera com maior previsibilidade devido à padronização e ao armazenamento do insumo. O milho pode ser estocado, analisado e processado sob controle rigoroso. Já a cana, por sua natureza perecível e dependente do clima, exige inteligência de dados ainda mais refinada para alcançar o mesmo grau de previsibilidade.
As condições climáticas continuam sendo o principal obstáculo à plena digitalização, demandando modelos preditivos capazes de incorporar variáveis como chuva, temperatura e umidade — ainda de difícil antecipação com precisão satisfatória.
NÍVEL DE PRONTIDÃO PARA A INDÚSTRIA 4.0 - ESTIMATIVA 2024 (Alemanha, China, média Mundial e Brasil)

Uma reflexão sobre os dados e o olhar de campo: É preciso, contudo, adotar uma postura crítica diante dos dados. Olhar para o passado ajuda a prever o futuro, mas não deve aprisionar a tomada de decisão. O campo muda, o clima muda — e os dados do passado nem sempre revelam toda a verdade. As informações mais valiosas ainda estão no campo, não no escritório. Permanecer próximo da operação, observar o comportamento da cana e dos equipamentos e compreender a realidade in loco continua sendo insubstituível.
Panorama global e posição do Brasil: Em perspectiva global, o setor sucroenergético brasileiro encontra-se em fase de aceleração digital, mas ainda distante da liderança. Com base no estudo do World Economic Forum, o País apresenta nível de prontidão inferior ao da Alemanha e ao da China, embora superior à média dos países de renda média-alta. O Brasil, portanto, avança de forma consistente, mas precisa intensificar sua capacidade de integração e inovação para ocupar posição de vanguarda.
Concluo, finalmente, que a Indústria 4.0 vai muito além de sensores, algoritmos e máquinas conectadas — trata-se de inteligência aplicada ao processo produtivo e da integração harmônica entre pessoas, tecnologia e natureza. O setor sucroenergético brasileiro tem potencial para se tornar referência mundial, desde que consiga unificar suas forças: o conhecimento empírico do campo, a precisão da indústria e a inteligência dos dados. Esse é o verdadeiro desafio — e também a grande oportunidade — da transformação digital que se desenha diante de nós.