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Fábio Trigo Raya

Pesquisador Pós-Doc da Unicamp – Universidade Estadual de Campinas

OpAA81

Agave: o Brasil na vanguarda da revolução energética
A humanidade e os agaves têm uma história rica, intensa e pouco conhecida. Os agaves foram domesticados há cerca de 9.000 anos, juntamente com o milho, nas regiões áridas da América Central e do Norte. Nesses locais, os agaves serviam como fonte de alimento, fibras para cordas, sapatos e roupas, sabão, bebidas e muitos outros usos. Não é exagero dizer que os agaves foram (e ainda são) uma cultura-chave para a subsistência dos povos do semiárido, sendo essencialmente a matéria-prima perfeita de uma “biorrefinaria ancestral”. Mas foi durante o período colonial que agaveicultura entrou num novo ciclo de desenvolvimento no qual começaram a ser explorados comercialmente em grande escala.
 
O uso moderno dos agaves se consolidou em duas vertentes principais. A primeira é a produção de fibras para cordoaria (sisal), com destaque para países como Brasil e Tanzânia. A segunda é a produção de bebidas alcoólicas, como tequila e mezcal, que são patrimônios identitários do México. Contudo, na última década, o agave tem se destacado internacionalmente como uma possível nova fonte de biocombustíveis, focada em áreas áridas e semiáridas, devido à sua alta eficiência no uso da água, produtividade e composição química singular.

Países como Austrália e Estados Unidos lideram esse processo e já começaram testes de campo, principalmente com o agave utilizado na produção de tequila, o agave tequilana. Em Queensland, Austrália, os resultados iniciais foram impressionantes: em cinco anos, os australianos conseguiram colher plantas com mais de 420 kg e rendimentos de etanol entre 4.854 e 6.673 litros por hectare ao ano. Isso quebrou o mito de que o agave tequilana só teria bom desempenho agrícola em altitudes semelhantes às de Jalisco, México.

Nos Estados Unidos, testes de campo mais modestos foram realizados no Arizona e em Utah por iniciativas acadêmicas, mas o destaque veio dos produtores na Califórnia. Nos últimos anos, com o agravamento das crises climáticas, regiões como a Califórnia começaram a investir na cultura do agave, embora mantendo o foco na produção de bebidas alcoólicas. 

O movimento, chamado de “Mezcalifornia”, já conta com seu próprio conselho (California Agave Council) e vive seu primeiro “agave boom”. A procura pela planta no estado foi tão grande que o preço da muda alcançou 8 dólares a unidade, mas os produtores locais mantiveram o apetite pela cultura.

Entretanto, é em terras tupiniquins que os maiores avanços para a produção de etanol de agave estão sendo feitos. Estamos falando do programa BRAVE – Brazilian Agave Development, uma parceria entre a academia (Unicamp, UFRB, Esalq e Unesp), o Senai Cimatec e a Shell, com a intervenção da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

O programa é dividido basicamente em três grandes projetos (Bio, Mec e Ind), que visam desenvolver todo o pacote tecnológico completo da cultura, desde um programa de melhoramento genético do agave, desenvolvimento de leveduras especializadas, protótipos de plantadoras e colheitadeiras mecanizadas até uma unidade em escala piloto para produção de etanol e biochar. Mais detalhes sobre o programa podem ser encontrados na edição de Nov-Jan de 2023 da Revista Opiniões.

Hoje, o Brasil está em uma posição de destaque para transformar o biocombustível de agave em realidade. Curiosamente, são empresas do interior paulista, como a Fermentec e a Empral, que fornecem consultoria em processamento e fermentação para as maiores destilarias de tequila. O histórico e a liderança do setor sucroalcooleiro brasileiro são as principais matrizes para esse desenvolvimento. Por exemplo, no México, a maior destilaria de tequila processa 40 toneladas de biomassa de agave por hora, enquanto uma usina de cana-de-açúcar em São Paulo processa 1.700 toneladas por hora. A escala dos destilados é ínfima quando comparada ao biocombustível. 
 
É nítido que, para os grandes produtores de tequila, existe um conflito intrínseco entre sabor e eficiência. O bom produtor de destilados sabe que são as pequenas ineficiências do processo que formam os perfis sensoriais que associamos com uma boa tequila ou um bom mezcal. A diferença entre etanol puro e uma bebida de qualidade está justamente nessas intervenções artísticas, o que nos confere uma vantagem, pois nossos motores flex não precisam de sal e limão para disfarçar o gosto de um destilado menos refinado.

Assim, quem visa a produção de agaves para biocombustíveis tem uma ampla gama de possibilidades de processo e de escolha de espécies ou variedades à sua disposição. Talvez a principal oportunidade seja o aproveitamento integral da planta. Hoje, os produtores de bebidas descartam as folhas dos agaves, mesmo elas representando cerca de 50% do peso total da planta e tendo
Brix de 15º, porque conferem amargor à bebida.
 
Podemos dizer que a tecnologia em nível industrial está bem consolidada no Brasil. No entanto, não é apenas pela experiência com a cana-de-açúcar que o país se destaca. O semiárido brasileiro ocupa 105 milhões de hectares, representando 12% do nosso território. Nessas áreas, que são inadequadas para a agricultura convencional e onde a terra é barata, temos uma grande oportunidade para a implementação de culturas específicas do semiárido, como o agave, especialmente em zonas de pastagens degradadas.

A produção de agave, aliada à produção e incorporação de biochar, tem o potencial de transformar o sertão em um grande polo de captura de carbono, além de ajudar a reter mais água no ecossistema local e promover segurança alimentar, hídrica e energética no semiárido brasileiro. Os potenciais são grandes, e os modelos mais atuais indicam que nossa produtividade pode ser equivalente ou superior à já encontrada na Austrália.

Ao implementarmos o cultivo de agave em apenas 10 milhões de hectares, poderíamos dobrar a atual produção de etanol, aproveitando o potencial das terras semiáridas, impulsionando a economia e fortalecendo a produção de biocombustíveis no Brasil. Isso não só promoveria o desenvolvimento sustentável da região, mas também consolidaria o país como líder na inovação e produção de energias renováveis.

Além disso, o Brasil possui uma tradição histórica no desenvolvimento da agaveicultura, liderada principalmente pelo pioneirismo do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) nas décadas de 1940 e 1950, que transformou o país no principal produtor de fibra de agave do mundo. O IAC desenvolveu um dos poucos programas de melhoramento genético de agave a ter sucesso globalmente, e agora, por meio do programa BRAVE, estamos resgatando e ampliando esses esforços.

Por exemplo, foram selecionadas plantas híbridas "flex" capazes de produzir tanto altos teores de açúcares quanto excelente fibra comercial, algo inédito no mercado, e os primeiros testes de campo no semiárido brasileiro estão sendo realizados com mais de 10 variedades potenciais de agave para produção de biocombustíveis. 
 
A produção de etanol a partir do agave tem paralelos com a do milho. Em ambos os casos, as plantas acumulam carboidratos não fermentáveis, necessitando de um processo de hidrólise para sua conversão. No milho, que acumula amido, a utilização de enzimas se consolidou como o principal método para converter esses açúcares complexos em glicose. Já o agave acumula uma molécula diferente, um polímero de frutose conhecido como frutano.

Os frutanos são mais comuns em plantas adaptadas a ambientes extremos e, além de suas funções fisiológicas importantes e alto potencial nutro-farmacêutico, possuem a característica de permitir o "armazenamento no campo". Isso libera o agricultor das épocas específicas de colheita, permitindo o fornecimento de agave durante todo o ano.
 
A transformação dos frutanos em açúcares simples pode ser realizada por métodos térmicos, ácidos ou enzimáticos. O método mais tradicional, utilizado nas destilarias, envolve o uso de fornos ou autoclaves durante um período de 36-48 horas. Unidades produtivas mais modernas, que se assemelham mais com usinas de etanol de agave, utilizam principalmente hidrólise ácida, reduzindo o tempo para apenas 2,5 horas e alcançando uma conversão quase total dos açúcares em frutose.

Quanto à hidrólise enzimática, alguns testes em escala laboratorial foram realizados, mas ainda não existe experiência comercial com essa estratégia. Uma das grandes possibilidades para aumentar a escala da produção de etanol de agave é o desenvolvimento de uma estratégia de fermentação direta, ou seja, a fermentação do caldo cru (não hidrolisado). Recentemente, a Unicamp depositou um pedido de patente relacionado a essa abordagem. 

A nova tecnologia envolve uma levedura (Saccharomyces cerevisiae) geneticamente modificada para produzir as enzimas necessárias para a quebra dos frutanos e realizar a fermentação simultaneamente. Esta inovação pode aumentar significativamente a viabilidade técnico-econômica do biocombustível de agave no país, representando um avanço importante para a sustentabilidade e eficiência da produção.

Nos próximos anos, é provável que o sertão experimente o seu próprio “agave boom”. As possiblidades de utilização dos agaves são enormes, não só para biocombustíveis, mas é neste produto que o Brasil terá sua maior vantagem competitiva. Contamos com solo adequado, clima favorável, variedades adaptadas, uma política de biocombustíveis sólida e, em breve, o pacote tecnológico completo. A concretização desse potencial é apenas uma questão de tempo.