Superintendente de Abastecimento da ANP
Op-AA-08
O álcool é o combustível da vez. Produzido a um custo mais barato que em qualquer outro país, originário de uma cadeia agrícola que tem se desenvolvido de maneira fabulosa nos últimos 30 anos, o etanol brasileiro é fonte de riqueza e de preocupação. O programa brasileiro do álcool passou por vários percalços ao longo de sua história. Irritou os consumidores e perdeu credibilidade em razão de oscilações bruscas no preço e no fornecimento do produto, típicas de uma commodity agrícola e pela visão, muitas vezes limitada dos governos, que não entenderam estarem tratando de um combustível, e não mais de um mero subproduto do setor agropecuário.
Nos últimos 5 anos, esta realidade inverteu-se. De um lado, a escassez e o aumento do preço do petróleo vieram para ficar. Hoje em dia, é praticamente unânime entre os especialistas a opinião de que o petróleo não baixará a menos de 40 dólares o barril. Pelo contrário. Não são poucos os que vaticinam um barril de petróleo a 100 dólares nos próximos anos.
O esforço exploratório, no sentido de encontrar novas reservas de petróleo em escala mundial, não tem se mostrado frutífero. A situação política no Oriente Médio está cada vez mais complexa e países como a China e Índia continuam aumentando o consumo a taxas de quase 10% ao ano.
De outro lado, a consolidação do chamado carro flexível fez surgir uma nova classe de consumidores de álcool hidratado, sempre atenta ao preço e à qualidade do produto. Atualmente, mais de 50% dos carros produzidos no Brasil são flex e a frota deste tipo de veículo já ultrapassou 1,1 milhão de unidades. O setor soube responder a este estímulo. A produção de álcool combustível - anidro e hidratado, alcançou, em 2005, cerca de 15 bilhões de litros.
São cerca de 300 unidades produtoras espalhadas por todo o país, e cerca de 90 outras em fase de instalação ou em projeto, especialmente nas regiões oeste de São Paulo, Minas Gerais e Goiás, o que acarretará, nos próximos 5 anos, um aumento na produção de 150 milhões de toneladas/ano. A mistura do álcool na gasolina subiu de 4,5%, em 1977, para 25 % em 2005, sem maiores problemas nos motores dos veículos.
Também no setor externo, os números impressionam. Em 1998, exportamos 35 milhões de dólares de álcool. Em 2005, este número alcançou 767 milhões de dólares.
Neste contexto é que o governo federal lançou, em 2004, um programa sustentado de inserção dos chamados biocombustíveis na matriz energética brasileira e a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis - nova denominação da ANP, a partir da Lei nº 11.097/2005, iniciou um trabalho, no sentido de colocar dentro do seu marco regulatório o chamado álcool combustível.
Os princípios que regulam o setor de combustíveis no Brasil estão referidos na chamada Lei do Petróleo (Lei nº 9.478/1997) e na Lei nº 9.847/1999. Este é o marco legal para as ações da ANP em todo o território nacional,visando garantir a oferta de combustíveis, com qualidade e preço, no interesse maior do consumidor. Esta legislação tem também como princípio o predomínio do interesse público sobre o particular, já que se está regulamentando uma atividade estratégica para o país e de alta sensibilidade econômica e política.
Ou seja, o governo tem os instrumentos legais para uma ação reguladora enérgica e abrangente sobre o setor, já que se trata de combustíveis, que devem estar disponíveis a tempo e hora, em todo o território nacional, sob pena de desabastecimento. Até a edição da Lei nº 11.097, a ação da ANP, quanto ao álcool, iniciava-se quando o produto chegava nas bases das distribuidoras, seja na forma de anidro - para ser misturado na gasolina “A”, para a formulação da gasolina “C”, seja na forma de hidratado, para ser repassado aos Postos Revendedores.
Após o novo marco legal, a primeira ação adotada pela ANP, no setor, foi no sentido do enfrentamento de um problema sério de qualidade do álcool hidratado. Tratava-se do chamado álcool molhado, expediente pelo qual agentes inescrupulosos, em toda a cadeia de abastecimento, retiravam o álcool anidro da Usina e, fraudulentamente, adicionavam água ao produto, vendendo-o ao consumidor como álcool hidratado.
No sistema tributário brasileiro, a refinaria, quando vende qualquer combustível, já recolhe todos os impostos da cadeia, inclusive o ICMS, que seria devido pela distribuidora e pelo posto de gasolina nas etapas posteriores de comercialização deste produto. Este é o princípio da substituição tributária, que evita a sonegação e simplifica a arrecadação.
Assim, no preço da gasolina “A”, vendida pela refinaria, já está incorporado o ICMS do álcool anidro que, na verdade, sai da usina de álcool. Ou seja, todo o álcool anidro vendido pelas usinas está sem ICMS, porque a refinaria, quando vendeu a gasolina “A”, já recolheu o imposto relativo ao produto. A fraude consiste em retirar uma partida de álcool anidro diretamente da usina - que sai sem imposto, hidratá-lo adicionando água - daí a expressão “álcool molhado”, e vendê-lo como álcool hidratado aos postos. Além da fraude tributária, há o aumento do volume, pela adição de água.
Os lucros são fabulosos e o consumidor comprará um produto que poderá danificar seriamente o motor do carro. Esta fraude, segundo dados do Sindicato das Distribuidoras de Combustíveis - Sindicom, alcançava entre 1,7 e 2,0 milhões de litros por ano - num mercado de 6,5 milhões de litros. A resposta da ANP à situação foi determinar a coloração do álcool anidro, já na usina, com um corante cor vermelho-laranja que, mesmo diluído em grandes proporções, permanece estável no produto.
Além da adição do corante, a resolução também determina outras obrigações relativas à qualidade do álcool. Os produtores e importadores de álcool deverão manter sob sua guarda, pelo prazo mínimo de dois meses, a contar da comercialização do produto, uma amostra-testemunha de cada batelada do produto, armazenada em embalagem devidamente lacrada e acompanhada de certificado de qualidade.
Durante este prazo, a amostra-testemunha e o certificado de qualidade deverão ficar à disposição da ANP para qualquer verificação que a agência achar necessária. O certificado de qualidade deverá ser firmado por químico responsável pelas análises laboratoriais efetuadas. Assim, o próprio consumidor, ao abastecer seu veículo na bomba, pode verificar se o álcool está límpido e incolor.
Se tiver qualquer rastro de coloração, certamente trata-se-á de álcool anidro molhado e bastará acionar as autoridades para fazer o flagrante do delito e a apuração de responsabilidades, inclusive na esfera criminal - crime contra a ordem econômica. Esta medida já demonstrou resultados concretos.
Em 2002, 12,6% do álcool hidratado vendido no país apresentava indícios de adulteração. Em janeiro de 2006, este número caiu para 4,8%. Outra medida, em fase final de implementação, é o cadastramento pela ANP de todas as unidades produtoras de álcool do país.
A partir de maio de 2006, toda e qualquer aquisição de álcool anidro ou hidratado pelas distribuidoras de combustíveis só poderá ser feita junto a Usinas que tenham sido cadastradas e tenham recebido o certificado e o cadastramento emitidos pela ANP.
Além disto, estas unidades produtoras passarão a enviar, por meio eletrônico, para o banco de dados da ANP no Rio de Janeiro - sistema SIMP, todas as movimentações mensais de álcool combustível. Estes dados serão cruzados com os dados enviados pelas refinarias, distribuidoras e transportadores. Assim, pela primeira vez, haverá condições para o acompanhamento físico dos estoques de álcool em todo o território nacional, classificados por unidade da federação, município, instalação-tancagem, etc.
Estes dados darão ao governo e aos planejadores um instrumento inédito, seja para monitorar os movimentos do produto visando coibir fraudes, seja nos estudos de projeção de consumo e estoques disponíveis. Estes dados serão fundamentais para a avaliação do abastecimento do mercado de álcool em todo o território nacional, especialmente na entressafra.
A ANP, é importante frisar, tem encontrado amplo apoio do setor sucroalcooleiro para a implementação destas medidas. As usinas, em todo o Brasil, rapidamente compreenderam a importância de se adaptarem a esta nova realidade e têm se esmerado na alteração de rotinas operacionais e contábeis, para cumprirem as novas regras do setor, emanadas da ANP.
A conclusão a que se chega é que, atualmente, há uma consciência, tanto do setor privado, quanto dos órgãos públicos, que o álcool deixou de ser uma mera commodity agrícola. O produto é, isto sim, um atalho para o Brasil entrar no século XXI com o pé direito, mostrando ao mundo uma relativa independência energética e oferecendo para o mercado externo um combustível limpo, renovável e barato. Mas isto só será uma realidade, se todos os atores desta longa cadeia estiverem convencidos de que, acima de tudo, temos de oferecer ao consumidor brasileiro um produto barato, de qualidade e em todo o território nacional. Este é o desafio do setor para o futuro.