Quando se fala em transição energética – e cada vez mais esse é um assunto abordado –, duas constatações são ponto de partida, praticamente um consenso. Que o Brasil sai na frente de outras nações por ter uma matriz energética com alto percentual de fontes renováveis e que o nosso país tem a chance de ser protagonista nessa transformação na forma como se produz e se consome energia.
Sancionada em outubro deste ano, a Lei do Combustível do Futuro dá um passo largo para o Brasil alcançar essa liderança mundial. A legislação é um novo marco para os biocombustíveis no país. Amplia a participação do etanol e biodiesel na nossa matriz e traz inovações regulatórias, especialmente quanto ao uso do biometano. Pela lei, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) definirá metas anuais para redução da emissão de gases do efeito estufa pelo setor de gás natural por meio do uso do biometano. A meta entrará em vigor em janeiro de 2026, com valor inicial de 1% e não poderá ultrapassar 10%.
Outra mudança significativa da nova legislação é a introdução de novos energéticos na nossa matriz. O principal deles é o combustível sustentável de aviação (SAF, na sigla em inglês). É sobre SAF que vamos tratar daqui por diante. A partir de 2027, os operadores aéreos serão obrigados a reduzir as emissões de gases do efeito estufa nos voos domésticos por meio do uso do SAF. A nova legislação estabelece uma rampa de descarbonização. As metas começam com 1% de redução e crescem gradativamente até atingir 10% em 2037. Hoje, a aviação é responsável por cerca de 2,5% das emissões globais de dióxido de carbono (CO2).
No caso do Brasil, um dos grandes trunfos para produção do SAF é a ampla disponibilidade de matérias-primas consolidadas, como o óleo de soja e o etanol de cana-de-açúcar e de milho, que já possuem alta prontidão tecnológica. Estamos falando de uma indústria que atrai grandes investimentos e tem potencial para impulsionar o desenvolvimento econômico em diferentes regiões do país.
Nem bem a Lei do Combustível do Futuro comemorou seus primeiros 30 dias de vigência e já começamos a ler na imprensa nacional o anúncio de projetos para produção de SAF, a partir de diferentes matérias-primas, como etanol de cana-de-açúcar ou de milho, soja, palma e macaúba.
São iniciativas lideradas por agentes que já atuam na indústria de energia, tanto na produção de biocombustíveis como no refino ou na distribuição de combustíveis fósseis. Um mercado com um potencial imenso, haja vista o Brasil ser hoje o segundo maior produtor de etanol do mundo.
Além dessas matérias-primas, abundantes no Brasil, há outra imensa “jazida renovável” a ser explorada. Segundo estimativas da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), o Brasil tem potencial para produzir cerca de 9 bilhões de litros de SAF por ano até 2030 apenas com o aproveitamento de resíduos do setor sucroenergético. Esse volume posicionaria o país como um dos maiores produtores globais de SAF, atendendo tanto à demanda interna quanto à exportação.
É nesta rota que se posiciona a Geo bio gas&carbon. Em parceria com a Copersucar, estamos desenvolvendo, no interior de São Paulo, uma unidade para produzir SAF a partir de 2025. Com financiamento da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), a planta terá uma produção em escala comercial de 750 litros/dia.
Será a primeira planta no Brasil para produção de SAF a partir de biogás. O objetivo é desenvolver em escala comercial um modelo de produção sustentável e que utiliza resíduos de biomassa como fonte de carbono biogênico. O projeto, que envolve investimentos da ordem de 6,3 milhões de euros, ganhou em outubro um novo parceiro, por meio de acordo com a Cooperação Brasil-Alemanha para o Desenvolvimento Sustentável. Serão aportados à iniciativa 1,5 milhões de euros do Ministério da Cooperação Econômica e Desenvolvimento (BMZ) da Alemanha, que serão implementados pela Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH, no âmbito do Programa develoPPP.
A Geo e a GIZ atuarão juntas no estabelecimento da cooperação internacional entre universidades e institutos de pesquisa brasileiros e alemães; na disseminação de conhecimento por meio de capacitação de profissionais; e no apoio à certificação da cadeia produtiva, desde sua origem, e à regulamentação do biocombustível no Brasil. Uma das metas dessa parceria é compartilhar a experiência da planta com outras empresas e multiplicadores para a reprodução do projeto por outros investidores. Já com a Copersucar, a Geo atuará na implantação e operação da usina. Hoje, o SAF produzido a partir do biogás é uma rota vista como mais vantajosa para o mercado externo.
A Europa, especialmente, enxerga o SAF produzido a partir de resíduos como combustível avançado. A parceria com a GIZ foi realizada com objetivo de construir uma solução que atenda também às diretrizes do mercado europeu e possa servir de referência. Esse projeto coloca o país na posição de agente de uma nova cadeia de valor sustentável, alinhada às demandas internacionais por soluções verdes. Podemos, desta forma, atingir mercados dispostos a pagar prêmios maiores por produtos que utilizam resíduos como matéria-prima.
Em seu processo produtivo, essa planta vai utilizar o Fischer-Tropsch (F-T), uma tecnologia amplamente reconhecida para a conversão de gás em combustíveis líquidos. Desenvolvido originalmente para transformar carvão e gás natural em combustíveis líquidos, o F-T pode ser adaptado para converter biometano em SAF. Além disso, é especialmente adequado para o Brasil, considerando o potencial de abundância de biometano disponível a partir do agronegócio. A tecnologia F-T possibilita a produção de combustíveis com uma qualidade similar à dos combustíveis fósseis, atendendo às rigorosas especificações da aviação.
A combinação entre a rota F-T e a disponibilidade de matéria-prima sustentável no Brasil faz com que o país tenha uma vantagem competitiva significativa. Permite a produção de SAF de maneira eficiente e em larga escala, o que é fundamental para atender à demanda crescente, tanto do mercado interno quanto externo.
De acordo com a Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA), a demanda por SAF pode atingir entre 6 e 7 bilhões de litros por ano até 2030. No longo prazo, essa demanda pode superar os 450 bilhões de litros por ano até 2050, à medida que mais companhias aéreas adotem políticas de neutralidade de carbono.
A União Europeia e os Estados Unidos, dois dos maiores mercados consumidores de combustíveis de aviação, já estabeleceram políticas de incentivo ao uso de SAF. Para o Brasil, essa é uma oportunidade ímpar de se tornar um grande produtor e exportador de SAF, aproveitando sua base industrial e agrícola e ampliando sua presença nas cadeias globais de energia limpa.
A transição para combustíveis sustentáveis é inevitável. O mundo caminha em direção a uma economia de baixo carbono, e o Brasil tem a chance de construir uma nova indústria, sob bases sustentáveis. As condições regulatórias e de mercado estão postas à mesa.