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Paulo de Araújo Rodrigues

Diretor do Condominio Agrícola Santa Izabel

Op-AA-40

Como valorar a "nova" cana-de-açúcar?

No Brasil colônia, já existia o conceito da “cana obrigada”, que vinculava a produção da cana a determinado engenho. A partir dos anos 1930, vivemos um sistema de cotas em que qualquer plantio vinculado à indústria dependia de autorização quando o setor era totalmente controlado pelo Estado. Esses fatos não são por acaso, a cana não pode ser tratada como soja ou milho, commodities que têm no mercado sua regulação.

Além de ser perecível, não podendo ser estocada, temos também a especificidade de distância, exigindo a busca do menor percurso para o processamento, somado ao fato de ser cultivo semiperene, exigindo decisões para o longo prazo. Vale aqui ressaltar algumas poucas regiões onde ainda temos alta concentração de unidades industriais e competição pela matéria-prima.

Esses fatos são traduzidos pela forma como quem planta cana ficou conhecido: fornecedor de cana e não produtor, como para todas as outras atividades agropecuárias. É lógico, quem planta cana precisa ter certeza de onde vai entregá-la, pois, sem isso, não há valor para a produção, evidenciando a necessidade de uma relação especial entre produtor de cana e indústria.

Nos anos 1990, depois da extinção do IAA - Instituto do Açúcar e do Álcool, e do fim da intervenção estatal, o setor, então chamado de sucroalcooleiro, mostrou maturidade e, antes de entregar-se ao impossível mercado livre sem nenhuma regra, decide pela criação do Consecana - Conselho dos Produtores de Cana-de-açúcar, Açúcar e Álcool, que estabeleceu um sistema de pagamento pela cana, com base nos valores do açúcar e álcool praticados e no antigo PCTS - Pagamento de Cana por Teor de Sacarose.

Nesse ponto, precisamos reconhecer que a mudança no sistema de pagamento pela qualidade da cana, implantada pelo PCTS a partir de 1984 e que teve, inicialmente, forte oposição na indústria, foi o indutor de importante ganho de produtividade para o setor, em função de, finalmente, alinhar os interesses de agricultores e indústrias em torno da qualidade da matéria-prima, em última análise, da quantidade de açúcar produzido por hectare, eliminando, ainda, uma série de arbitrariedades na avaliação da cana, trazendo transparência para o sistema, além de evidenciar e valorizar os mais eficientes.

Esse foi um grande passo para reduzir os ranços e as diferenças do passado e iniciar a construção de uma relação mais moderna e equilibrada dentro do setor. Desde então, o Consecana passou a ser o guia nas relações entre produtores e indústrias.

Certamente, vem sendo feito um esforço para adaptar as regras estabelecidas às mudanças que estamos vivenciando, seja no mundo onde podemos ressaltar a velocidade das informações, afetando a volatilidade dos negócios e as cadeias produtivas, seja no Brasil, com a transição, em um curto prazo, de uma euforia incentivada para um antagonismo do Estado, mas, principalmente, dentro do próprio setor, quando saímos da colheita manual queimada para a mecanizada sem queimar, no aumento de custos levando à concentração e ao fechamento de unidades industriais, nos sistemas de transporte de cana, na produção de energia via cogeração, entre outros novos produtos, no aumento da complexidade das legislações ambientais e trabalhistas, na maior eficiência industrial, apenas para citar alguns pontos.

Agora, somos o setor sucroenergético, e, seguramente, as mudanças não vão parar por aqui!

Infelizmente, apesar do esforço de muitos, a remuneração da cana aos produtores não conseguiu acompanhar essas mudanças, reduzindo a renda e a participação deles no setor. O pagamento de cana no formato atual vem aumentando a distância não somente entre usinas e produtores, desequilibrando as relações, mas entre usinas, também evidenciando a necessidade de atualizar e modernizar as regras do Consecana. No caso da apuração da qualidade da matéria-prima, ainda temos a fibra como grande vilão, reduzindo preciosos quilos de ATR - Açúcar Total Recuperável - no cálculo do valor da cana.

A partir da intensificação do uso do bagaço e, mais recentemente, do recolhimento da palha, a fibra passou a ter valor e não pode mais ser entendida simplesmente como “impureza vegetal”. A metodologia já foi reavaliada para atenuar essa questão, mas sabemos que ainda temos diferenças a conciliar. Esse fato torna-se ainda mais relevante quando levamos em conta a operação de colheita, onde podemos colher mais ou menos fibra no atendimento dos interesses da indústria, podendo dizer que passamos a ter mais de um padrão de matéria-prima.

Já na questão dos produtos que compõem a fórmula que transforma os valores praticados no mercado ao longo da safra em valores de ATR para remunerar a cana, não podemos ignorar que o setor não vive mais exclusivamente dos diversos tipos de açúcar e álcool. Cada vez mais, aparece a energia gerada pelo uso do bagaço e da palha na composição do faturamento das indústrias, e que, não raro, nesses momentos de crise, é alçada à condição de salvadora da lavoura.

Outra questão é a tomada dos valores de venda dos produtos que compõem o sistema de cálculo que representa as médias praticadas no mercado e que levará, obviamente, a um preço médio de ATR para pagamento da cana. As indústrias em melhor situação financeira e que utilizam melhor as ferramentas modernas de comercialização vendem sua produção por valor acima daquele apurado para o pagamento da cana, mas pagam essa cana pelos valores médios apurados, apropriando-se da diferença. O inverso também é verdadeiro. Alguém poderá dizer que isso faz parte do jogo e que vivemos em uma economia de mercado, e, portanto, a eficiência é uma prerrogativa para seguir em frente.

O fato é que o produtor de cana, independente de sua condição financeira ou eficiência, não tem nenhuma chance de escolha, ou seja, não tem nenhum acesso ao mercado. Outro ponto é a utilização do ATR relativo, artifício previsto pelo regulamento do Consecana e que traz benefício no curto prazo para a indústria, seja por transferir renda do produtor, seja pela melhoria logística para a colheita.

No longo prazo, corremos o risco de apenas mudar de época a concentração da cana do produtor e ainda perder o estímulo à qualidade individual, transformando em prejuízo para todos. Em vez disso, deveríamos estimular o manejo varietal, grupos de colheita e buscar a entrega da cana durante toda a safra, invertendo a concentração das operações e da renda, como já foi no passado.

Esses pontos e alguns outros não são novidade, tanto é que muitas indústrias têm buscado alternativas para driblar esses problemas e, assim, melhor remunerar a matéria-prima, utilizando os valores de venda próprios para o cálculo do valor da cana, estabelecendo planos de incentivo em que o produtor recebe mais em função de metas estabelecidas e/ou programa de certificação, subsidiando, principalmente, operações de colheita, ou, simplesmente, aplicando ágio sobre o valor básico.

O Consecana precisa continuar a ser modernizado, enfrentar e discutir as mudanças necessárias, de modo a harmonizar, com justiça, as relações no setor sucroenergético. Essa crise uma hora acabará, e, seguramente, teremos outras. Mas as relações não vão passar, ao contrário, precisam ser cultivadas e preservadas, fortalecendo o setor e aumentando nossa legitimidade ao mostrar à sociedade nossa importância!