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Edis Milaré

Diretor da Milaré Advogados, Consultoria em Meio Ambiente Ex-Secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo

Op-AA-09

A indústria alcooleira e o direito ambiental: reflexões para um debate

Quem primeiro plantou canaviais no Nordeste Brasileiro, ocupando sucessivamente grandes extensões e destruindo a Mata Atlântica, não poderia sequer imaginar a situação que os canaviais desenhariam depois de passados alguns séculos. Como outras muitas intervenções da potência colonialista na Terra de Santa Cruz, os engenhos deixaram profundas marcas sociais e ambientais negativas, hoje irreversíveis.

Neste início de milênio, a cana pode repartir com o café o título de ouro verde. Dela provém grande massa de energia: o alimento, a bebida, o combustível; em todos esses setores o açúcar é um recurso alternativo, que compete com outros, dentro e fora do país. O caso da energia carburante é emblemático. Evidentemente, o uso intensivo do recurso cana é um desafio para a economia.

Mas, ele o é igualmente para a sociedade e para o regramento jurídico-ambiental. Os seus derivados - inclusive o bagaço com o seu poder calorífico, enfrentam, sempre mais, os questionamentos da ciência e da técnica, as interrogações do Direito do Ambiente eas preocupações da sociedade. É pena que a doutrina, a legislação e a jurisprudência, concernentes ao assunto, não caibam nos limites desta página. Vamos, porém, arriscar algumas reflexões que, mesmo genéricas, apontam os obstáculos e os caminhos para as soluções jurídicas.

Desde logo, as necessidades de se abrir novas fronteiras agrícolas e implantar novas usinas deparam-se com uma realidade que transcende o escopo - ou escopos - da agroindústria sucroalcooleira: a preservação da capacidade dos ecossistemas para responder a essa demanda acrescida sem comprometer o meio ambiente total, a saber, os recursos naturais de solo, ar e água, da flora e da fauna, e mais as coletividades humanas, implicadas no processo. Numa palavra: o equilíbrio ecológico e o econômico-social.

Os riscos decorrentes da expansão de fronteiras agrícolas e do estabelecimento de monoculturas são significativos, para não se dizer graves, sob os pontos de vista mencionados acima. Em rigor, expansão agrícola e monoculturas deveriam ser objeto de planejamento rigoroso, que tentaria compatibilizar a liberdade de iniciativa dos empreendedores, com o interesse nacional maior e o respeito ao patrimônio ambiental. Os direitos constitucionais, em geral, devem ser interpretados e aplicados à luz da própria Constituição Federal e da legislação brasileira, dela decorrente.

Segundo a Carta Magna, a função social da propriedade prevalece sobre o uso particular indiscriminado, assim como a Ordem Econômica obedece a Ordem Social. Com efeito, não se justifica, à luz do Direito, a expansão de atividades econômicas que, muito louváveis em si mesmas, pudessem vir a comprometer interesses difusos e outros maiores, como o bem-estar das comunidades humanas, a qualidade ambiental e a qualidade de vida.

Por isso, o ordenamento jurídico entra na obrigação de estabelecer restrições, normas técnicas e, em casos extremos inevitáveis, também o impedimento cabal e definitivo do empreendimento nocivo e degradador do meio. Não falemos de desenvolvimento sustentável, expressão muito sovada e nebulosa. É preferível que nos ocupemos realmente da sustentabilidade do ambiente natural e do meio urbano, incluindo-se aí toda sorte de recursos naturais bióticos e abióticos, assim como todo tipo de empreendimento.

Para aferir a oportunidade e a necessidade dos empreendimentos, com sua adequação à necessidade e às exigências socioambientais, está à nossa disposição um instrumento inquestionável quanto a seu mérito: o licenciamento ambiental. Ora, o licenciamento ambiental não tem, nem poderia jamais ter, o intuito perverso de barrar empreendimentos pelo simples fato, aliás, inevitável, de eles alterarem as condições necessárias à qualidade ótima do ambiente urbano e à qualidade essencial do ambiente natural.

Resta saber até que ponto, em cada caso concreto, os ecossistemas naturais e os ecossistemas urbanos podem receber e absorver impactos negativos, sem perder suas características positivas essenciais. E o impacto dos canaviais e da indústria do açúcar e do álcool sobre o espaço, o solo e as cidades vizinhas é já bem notório.

Quanto ao licenciamento ambiental, também conhecido pelas peias que cria, pode ser aperfeiçoado no sentido de prazos, tramitação, condicionantes técnicas e ambientais. É certo, por outro lado, que o setor sucroalcooleiro pode colaborar com eficácia nesse aperfeiçoamento. De fato, já contamos com uma consolidada experiência nesse tema.

Cremos que, pode ser revista ou introduzida, uma parametrização do processo licenciatório, de modo a simplificar os quesitos e requisitos comuns – eis que as plantações e as usinas em muito se assemelham. Em contrapartida, os aspectos específicos a cada empreendimento podem ser convenientemente detalhados, abrindo assim espaço para a busca de alternativas, num planejamento ambiental ecológico-econômico, como contemplado na legislação.

Em síntese: não basta que cresça um setor isoladamente, ainda que legítimo, oportuno e desejável. É necessário que cresçam o País, os estados e municípios, de maneira harmonizada, mediante a busca da sustentabilidade econômica, social e ambiental. A meu ver, este é um bom destino para as culturas e as usinas de açúcar e álcool. Por conseguinte, o setor sucroalcooeiro é chamado a participar pró-ativamente no aperfeiçoamento da legislação a ele pertinente e na consolidação da sua base doutrinária.