Centro de Excelência em Eficiência Energética da UNIFEI e Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético da UNICAMP
A energia, definida como a capacidade de produzir transformações, seja elevando um objeto ou aquecendo uma peça, pode ser transportada de um local a outro utilizando combustíveis (portadores de energia química) ou eletricidade (portador de energia elétrica).
Considerando as aplicações de interesse em nosso dia a dia, a eletricidade e o hidrogênio não são recursos ou fontes energéticas primárias, tomadas da natureza, mas podem ser produzidas por diversas tecnologias, transportadas, armazenadas e convertidas em outras formas de energia, como movimento de um veículo ou a iluminação. Dessa forma, a eletricidade e o hidrogênio são parecidos.
Uma das semelhanças tem a ver com seu surgimento e as expectativas de utilização. Na fascinante história da energia elétrica, a partir das contribuições geniais de estudiosos como Benjamin Franklin, Alessandro Volta, Humphry Davy, Hans Christian Oersted e Michael Faraday, a eletricidade deixou, progressivamente, de ser uma curiosidade temida e passou a ser algo útil, atualmente, essencial.
Nesse sentido, é interessante recordar que, ao demonstrar em 1831 o funcionamento de um gerador elétrico e questionado sobre a serventia de sua invenção, Faraday replicou: “Mas que utilidade tem um recém-nascido?”. Embora o hidrogênio tenha sido descoberto por Henry Cavendish, em 1766, reagindo ácidos com metais e batizado em 1783 por Antoine Lavoisier, ao observar que a combustão desse gás produzia água, sua efetiva aplicação em escala comercial aconteceu apenas no século 20, inicialmente na produção de amônia, mediante o processo desenvolvido por Fritz Haber e Carl Bosch em 1908 e posteriormente no refino de petróleo, melhorando a especificação de produtos e valorizando correntes pesadas de menor valor.
Entretanto, essas aplicações de hidrogênio, que respondem por grande parte dos mais de 90 milhões de toneladas de hidrogênio consumidos, anualmente, em nosso planeta, utilizam hidrogênio produzido a partir de gás natural, petróleo e até carvão mineral, com expressivas emissões de carbono para a atmosfera.
O novo hidrogênio, que tem mobilizado recursos vultuosos e redesenhado estratégias e planos energéticos, especialmente em países desenvolvidos e dependentes energeticamente, é o hidrogênio produzido a partir de energia renovável, com baixa pegada de carbono e alinhado com a presente transição energética, capaz de substituir combustíveis fósseis.
É esse o hidrogênio que devemos ver como um menino ainda, depositário de tantas esperanças, capaz de promover um futuro mais sustentável. As projeções de mercado para o hidrogênio renovável são desafiadoras, indicando que até 2050 o consumo anual desse energético poderá ser da ordem de 500 milhões de toneladas, necessitando de investimentos superiores a 30 trilhões de dólares americanos, segundo o Banco Mundial. A oferta tem sido essencialmente considerada a partir de eletricidade, e a demanda orientada para a mobilidade, de pessoas e carga, e processos industriais, especialmente a amônia (nesse caso amônia verde, de baixa pegada de carbono) e produtos energointensivos, como aço e cimento.
Tais perspectivas implicam superar desafios tecnológicos relevantes, devido às características físicas do hidrogênio, as quais impõem pressões muito elevadas e/ou baixas temperaturas de operação, materiais especiais, etc., que por sua vez acarretam altos custos de capital e operação. Cabe lembrar que a civilização moderna superou desafios similares na implantação dos atuais sistemas elétricos e poderá, ao longo do tempo, também tornar a economia do hidrogênio eficiente e competitiva, deixando sua atual infância e alcançando a maturidade.
No atual contexto incipiente da indústria global do hidrogênio, reconhecendo os relevantes logros da moderna biotecnologia energética no Brasil, é oportuno explorar novas possibilidades, sem desprezar esse gás como vetor energético, mas abrindo outros caminhos para sua oferta e demanda, eventualmente, mais consistentes e racionais do que os atuais protagonistas têm promovido para o jovem hidrogênio. Com efeito, se o objetivo é perseverar na transição energética, com economicidade e efetividade, a bioenergia moderna pode e deve ser considerada com atenção, como sumarizamos a seguir.
Pelo lado da produção, é importante observar que a eletrólise é apenas uma das maneiras de produzir hidrogênio, utilizando eletricidade para separar os componentes da água, a razão de aproximadamente 60 kWh/kg de hidrogênio. Existem outras formas, especialmente, empregando vetores de bioenergia, com destaque para a reforma do biometano (CH4), principal componente do biogás, com uma produtividade ao redor de 8 m3 de biogás/kg de hidrogênio, a reforma do etanol (C2H6O), com uma produtividade ao redor de 9 litros de etanol/kg de hidrogênio.
Ambos esses processos endotérmicos são similares e tecnologicamente maduros, nos quais com auxílio de catalisadores adequados e água, a energia desses biocombustíveis permite manter reatores (reformadores) com a temperatura entre 600 e 900 ºC, e produzir correntes com hidrogênio, que pode ser purificado até teores elevados. Não é difícil estimar a competitividade do biogás e do etanol frente à eletricidade, especialmente, se são empregados valores reais de fatores de capacidade e custos de investimento e operação, que reduzem em muito a atratividade dos sistemas de eletrólise.
Uma terceira alternativa são os processos de gaseificação de biomassa sólida de baixo custo, como resíduos agrícolas e florestais, produzindo gases com teores de hidrogênio mais baixos, mas que também podem ser purificados. Esses últimos processos se encontram em desenvolvimento, com resultados promissores, entretanto, sem ainda terem demonstrado sua viabilidade econômica.
O consumo do hidrogênio, desde uma perspectiva econômica e sustentável, ainda precisa desenvolver curvas de aprendizagem e se estabelecer por seus próprios méritos; como se sabe, trata-se de um mercado em fase inicial de desenvolvimento. Não obstante, parece que as aplicações industriais, são as mais promissoras, considerando a demanda potencial de produtos de baixa pegada de carbono, como fertilizantes (amônia verde) e metais ferrosos. Em ambos os casos, novamente, a bioenergia sustentável tem se mostrado bem-posicionada para oferecer rotas eficientes e competitivas.
Em aplicações de mobilidade, mesmo considerando a possibilidade de produzir hidrogênio com etanol, se os pressupostos de ordem econômica e ambiental devem prevalecer, o uso direto do etanol deve ser avaliado como a alternativa mais eficiente e competitiva.
Enfim, é imperativo ter claro que a fotossíntese, a reação fundamental da vida, é a precursora da moderna economia do hidrogênio. Nas folhas, a luz solar decompõe a água, liberando o oxigênio (O2) e combinando o hidrogênio (H2) com o CO2 absorvido da atmosfera e formando os açúcares, base de toda a diversidade de biomassa e suas consequências, como os combustíveis. O hidrogênio do etanol, do biogás e de toda biomassa, veio da água, produzido com a energia solar. Assim, o hidrogênio presente na bioenergia não é uma criança, é tão antigo quanto a vida em nosso belo planeta.
Nota: Como complemento a esse artigo, veja Horta Nogueira, L.H., Hidrogênio renovável a partir da biomassa: perspectivas no Brasil, Revista Opiniões, Ano 19, Nº 74.