Diretor de Economia e Inteligência Estratégica da UNICA e pesquisador do Observatório de Bioeconomia da FGV/EESP
Estabilidade regulatória, maior complexidade dos negócios, inovações e eficiência produtiva devem pautar o futuro da indústria sucroenergética. Na esfera institucional, é evidente que evoluímos substancialmente nos últimos anos. Há uma década, o País contabilizava usinas fechando diante da equivocada política de preços e tributos aplicada aos derivados para controle inflacionário no mercado interno.
Naquele momento, não havia nenhum instrumento de política pública para equacionar a escolha entre o maior custo presente dos combustíveis renováveis e o ônus futuro decorrente da manutenção do uso de combustíveis fósseis. Nessa área, os avanços observados nos últimos cinco anos precisam ser ressaltados.
Por um lado, foi aprovada e implementada a Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), que instituiu um arcabouço arrojado de reconhecimento e valoração da redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE) promovida pelos biocombustíveis. O mencionado sistema trouxe ainda diretrizes acerca do papel da bioenergia na matriz nacional, por meio da definição das metas decenais de descarbonização.
Afora essa estrutura criada pelo RenovaBio, a aprovação da Emenda Constitucional nº 123/2022 (EC 123/2022) também incorporou ao capítulo ambiental da constituição brasileira a necessidade de carga tributária diferenciada para os biocombustíveis que concorrem diretamente com combustíveis fósseis. Assim, atualmente, o arcabouço institucional vigente no País possui dois dos principais instrumentos preconizados mundialmente para equacionar falhas de mercado presentes na competição entre energias fósseis e renováveis: o imposto sobre carbono e o sistema de comércio de emissões.
De fato, a exigência imposta pela EC 123/2022 estabelece no mercado de combustíveis uma lógica similar àquela gerada pelas taxas de carbono (produtos com maior emissão de GEE devem receber maior carga tributária). A presença dos créditos de descarbonização (CBios), por sua vez, remetem a uma estrutura alinhada aos sistemas de comércio de emissões, nos quais são impostas metas de redução de emissões com precificação do carbono via mercado.
O desafio agora é oferecer estabilidade às regras vigentes, garantindo segurança para novos investimentos em bioenergia. Isso porque, nos últimos meses, esses instrumentos foram deturpados diante da alteração unilateral das datas para cumprimento das metas do RenovaBio, das inúmeras mudanças nas alíquotas e na sistemática dos tributos aplicados sobre combustíveis no País.
Essas alterações não previstas no arcabouço vigente prejudicaram sobremaneira o funcionamento do mercado de CBios e a competitividade do etanol no setor de combustíveis. A estabilidade regulatória passa por disciplinar a diretriz dada pela EC 123/2022, evitando que interpretações equivocadas possam distorcer o dispositivo instituído pelo Congresso Nacional. No caso do RenovaBio, é preciso aperfeiçoar a governança para a definição e alteração das metas de descarbonização, além de aprimoramentos no sistema de comercialização de CBios. Ademais, é fundamental preservar a transparência e o alinhamento de mercado na precificação doméstica dos derivados no País.
Essas mudanças passam, inclusive, pelo debate da reforma tributária, pela discussão sobre o novo mercado de carbono e pela próxima fase da política aplicada ao setor automotivo no Brasil. Além dessa necessidade de minimizar a insegurança regulatória, o futuro exigirá maior empenho da cadeia sucroenergética diante da complexidade crescente dos negócios. O setor do açúcar e do etanol de cana-de-açúcar é passado. Hoje é o setor do etanol de cana, do etanol de milho, do etanol de segunda geração, da bioeletricidade, do biogás e do biometano. No futuro, também poderá ser o setor da bioenergia com captura de carbono, do hidrogênio renovável e do combustível sustentável de aviação, por exemplo.
A multiplicidade de soluções no mundo da energia e essas alternativas diferenciadas oferecidas pela bioenergia no Brasil estabelecerão interconexões setoriais ainda não presenciadas pela cadeia sucroenergética.
Na mobilidade de veículos leves, por exemplo, a competição histórica entre etanol e gasolina ganhará novos contornos com as tecnologias automotivas, que incorporarão a esse mercado diferentes fontes de energia elétrica (eólica, fotovoltaica, hídrica, etc.) no médio prazo, e novos produtos como o hidrogênio no futuro – esse último também poderá ser produzido a partir de diversas rotas com combustíveis fósseis e diferentes opções renováveis.
A substituição do querosene fóssil por combustíveis sustentáveis na aviação também estabelecerá nova disputa por mercado entre as diferentes rotas e matérias-primas, que podem ser adotadas para a produção do bioquerosene (etanol, óleo vegetal, biomassa, entre outros). Adicionalmente, a cadeia presenciará os mesmos dilemas de precificação e regulação observados entre etanol e gasolina no caso do gás natural e do biometano.
Essa mesma lógica, também, se aplica quando a análise remonta ao sistema produtivo. O inter-relacionamento entre os mercados de açúcar, etanol, ração, grãos, farelo, óleos e energia elétrica, por exemplo, deve se intensificar no futuro, assim como a competição agrícola entre as diferentes culturas utilizadas para a produção de biocombustíveis.
O fato é que a disputa histórica entre fósseis e renováveis, experimentada pelo setor sucroenergético no caso do etanol e da gasolina, deve ganhar novos contornos com a incorporação da concorrência também entre diferentes fontes renováveis. Trata-se de um ambiente de ampla complexidade, que exigirá maior resiliência e capacidade de adaptação e antecipação da indústria sucroenergética.
Por fim, essa maior competição ampliará o desafio da produção eficiente. A cadeia sucroenergética precisará produzir mais energia, com menor custo e menor emissão de gases de efeito estufa, além de ampliar o portfólio de produtos fabricados a partir da energia capturada pela biomassa no campo.
Nesse contexto, o componente ambiental, visto como um diferencial dos biocombustíveis frente os combustíveis fósseis, será apenas mais um atributo na disputa por mercado com outros renováveis. É imperativo que a cadeia sucroenergética continue buscando ganhos de eficiência econômica e eficiência energético-ambiental nos próximos anos, com novas tecnologias na área agrícola e inovações na indústria.
Se, por um lado, a humanidade precisará de todas as soluções disponíveis para fazer frente à emergência climática global, por outro, é certo que esse potencial de demanda exigirá esforço dobrado da cadeia sucroenergética para surfar na onda da economia de baixo carbono.