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Eduardo Pereira de Carvalho

Diretor de Relações Institucionais da ETH BioEnergia - Grupo Odebrecht

Op-AA-01

Os riscos de um desequilíbrio energético

Chega a ser irônico que o Brasil, país que pode se orgulhar de contar com uma das matrizes energéticas mais limpas do planeta, caia no “canto de sereia” de que uma fonte fóssil de energia pode ser favorável ao meio ambiente. Essa ironia, porém, pode custar caro não só para setores produtivos com alta geração de empregos, como o sucroalcooleiro, e para os consumidores atuais, iludidos pelo discurso de energia ecologicamente correta.

O preço maior poderá ser pago pelas próximas gerações, se não houver uma correção de rota na política atual de estímulo ao GNV, Gás Natural Veicular. O desequilíbrio provocado pelo tratamento preferencial concedido ao GNV já provocou estragos na indústria do álcool, combustível comprovadamente limpo e renovável, diante da migração de parte do consumo para o carro a gás.

Não há levantamento oficial, mas a frota de veículos convertidos a GNV, no Brasil, está estimada em cerca de 600 mil unidades,com consumo da ordem de 1,3 milhão de metros cúbicos de gás, equivalentes a 1,9 bilhão de litros de álcool ao ano. Assim, a frota brasileira movida a GNV é a segunda do mundo, atrás somente da Argentina.

O que pode parecer, de início, concorrência normal de mercado, assume características de favorecimento ilícito. A vantagem competitiva do álcool GNV em relação ao álcool baseia-se em custos artificialmente baixos, condições facilitadas para distribuição e venda do produto, fraude fiscal e desrespeito à legislação ambiental.

O gás é vendido às concessionárias com preço (posto city gate) favorecido quando para uso em veículos. São preços sensivelmente inferiores aos utilizados para fim industrial, residencial e para cogeração. Isso indica uma estrutura diferente entre as diversas classes de consumidores, o que é proibido pelas regulamentações existentes, uma vez que caracteriza subsídio cruzado.

As margens permitidas pelos concessionários de distribuição também mostram essa perigosa prática. Exemplo disso é o fato de o gás residencial em São Paulo custar 6,2 vezes o valor do GNV. O gás hoje goza de inexplicáveis vantagens fiscais, principalmente no ICMS dos estados. Em média, a alíquota incidente sobre o GNV é de 12%, enquanto a do álcool é de 25%, chega a 31% no Rio de Janeiro.

Em São Paulo, no mês de dezembro de 2003, a alíquota sobre o álcool caiu para 12%, amenizando um pouco a situação. Outro benefício, que não pode ser esquecido, é a isenção de recolhimento da Cide, Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico, mesmo sendo um combustível declaradamente fóssil, o que, em outros países, seria motivo suficiente para a cobrança da chamada “carbon tax”.

Para aumentar as distorções, também é freqüente a conversão para GNV de veículos a álcool adquiridos com redução de IPI, caracterizando flagrante fraude fiscal. E é justamente no quesito conversão que a falácia do GNV ser uma fonte de energia “ecologicamente correta” ganha dimensões de tragédia, em termos de poluição local. O gás natural veicular só merece o status de energia limpa em comparação ao óleo diesel utilizado no transporte urbano de pessoas e cargas, uma vez que não emite a fumaça preta, ou quando substitui o óleo para fins industriais.

No entanto, torna-se um problema quando se compara suas emissões com as dos veículos movidos a gasolina com 25% de álcool anidro e ainda mais em relação aos movidos exclusivamente a álcool. Estimulada até por bancos públicos e privados, as conversões de veículos a gasolina e a álcool para GNV ocorrem, em sua maioria, por meio da instalação de kits mais baratos, fora das normas de emissão de poluentes válidas para os demais veículos, muitas vezes em oficinas de fundo de quintal.

Se o impacto sobre a poluição local é grave, toma dimensão de tragédia quando se observa seu efeito em termos globais, já que o GNV é constituído principalmente de metano, um dos principais gases causadores do efeito estufa. Isso representa um passo atrás do ponto de vista ambiental, de acordo com estudo do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (Nipe), da Unicamp.

O resultado desse “canto de sereia” já foi alvo de projeções da Câmara Setorial de Açúcar e Álcool do Ministério da Agricultura – em 2010, o GNV estará substituindo 5,8 bilhões de litros de álcool combustível. Esta estimativa pressupõe a manutenção das condições artificialmente favoráveis existentes hoje e representa a eliminação de 1 milhão de hectares de cana-de-açúcar correspondentes a 200 mil empregos diretos.

Como se não bastassem os problemas sócio-econômicos provocados por uma escolha insensata em relação à matriz energética, corre-se o risco de deixar de lado o patrimônio ambiental resultante do uso intensivo do etanol como combustível – e que levou, há pouco mais de um ano, à assinatura de um acordo entre Brasil e Alemanha para estimular o consumo de 100 mil veículos movidos exclusivamente a álcool no País, em troca de créditos de carbono.

Existem algumas medidas imediatas que poderiam contribuir para impedir uma concorrência desigual do GNV em veículos leves. Essas medidas, sugeridas pela Câmara Setorial, incluem a cobrança complementar do IPI relativo ao carro a gasolina, quando da conversão de carro a álcool para GNV; carga fiscal equivalente à da gasolina para GNV, inclusive com incidência da Cide correspondente ao da gasolina substituída – essa diferenciação se faz necessária em favor do álcool, uma vez que o hidratado gera benefícios sociais e ambientais.

Abrange também a obrigatoriedade de certificação de conformidade ambiental para todos os veículos convertidos para o GNV, a exemplo do que ocorre com os demais carros; e isonomia na concessão de financiamento e taxas preferenciais por agências oficiais. O gás, um combustível fóssil e sabidamente finito, tem um papel importante a desempenhar na matriz energética brasileira, preferencialmente na geração de energia e nos transportes pesados e no seu industrial. Usá-lo em veículos leves é entregá-lo ao “canto da sereia”, e o destino dos navegantes gregos que caíram nesse canto foi a própria destruição.