Há 30 anos, a Europa implementava a primeira legislação de emissões de poluentes para caminhões e ônibus, chamada Euro I. Durante os 21 anos que se seguiram, o berço da indústria automobilística de veículos comerciais pesados investiu massivamente em tecnologia de combustão e tratamento de gases de escape, até que, finalmente, em 2013, foi implementada a fase Euro VI ? desde então, o nível mais restritivo de emissões.
Foram alcançados expressivos 95% de redução nos níveis de emissão de óxido nitroso (NOx) e 98% de redução de emissão de material particulado (PM), uma marca espetacular, considerando que, no mesmo período, foram inseridos ciclos de homologação de emissões cada vez mais desafiadores, que representassem os ciclos reais de operação em campo. A tecnologia de refino do diesel evoluiu da mesma forma, sendo necessário, principalmente a partir da Euro III, o estabelecimento de nível mínimo de cetano, propriedade ligada à velocidade de ignição, e máxima concentração de enxofre, elemento relacionado à emissão de partículas, de modo a suportar os limites mais restritivos de emissões e melhor eficiência da combustão.
O Brasil, através do Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores, denominado Proconve, seguiu passos similares na implementação de regulamentações de redução de emissões de poluentes e material particulado, iniciando a fase P1, em 1987, e chegando à fase P7, em 2012. A fase P8, equivalente à Euro VI na Europa, deverá ser implementada no próximo ano.
Contudo, apesar do grande mérito que os programas de redução de emissões veiculares trouxeram para a qualidade do ar, principalmente em centros urbanos, um risco ambiental ainda maior se revelou durante o mesmo período: a abrupta alteração do clima na Terra – o aquecimento global.
Com o passar dos anos, os picos de temperatura estão cada vez maiores, alterando significativamente o equilíbrio das estações climáticas e o cotidiano no planeta. É sabido que a participação das emissões de GEE provenientes do transporte comercial rodoviário não é a mais significativa, mas torna-se fundamental anular o seu efeito, assim como estão sendo endereçadas medidas de mitigação para as demais fontes de GEE.
Dessa forma, tornou-se prioridade a redução da taxa de aquecimento global, através de um esforço multinacional sobre diferentes segmentos de mercado, a começar pelas regiões mais populosas, mais desenvolvidas e/ou maiores produtoras de alimento, principais responsáveis pela geração de GEE. Entre as moléculas mais emitidas, estão o dióxido de carbono (CO2) e o metano (CH4), subprodutos da combustão de combustíveis fósseis da decomposição da matéria orgânica. Como resultado, as regulamentações de emissões de veículos passaram a priorizar a eficiência energética e os GEE.
Apesar da complexidade em se estabelecer um ciclo de medição em campo de consumo de combustível dos pesados, em face da diversidade de aplicações de caminhões e carência de dados históricos, os países desenvolvidos implementaram algoritmos e premissas de eficiência dos principais subsistemas do veículo para dar início a um plano de descarbonização do transporte.
Foi o caso dos EUA, pioneiros na implementação de limites legais de emissões de GEE em 2014. Em 2019, a Europa implementou uma ferramenta abrangente denominada VECTO – do inglês Vehicle Energy Consumption Calculation Tool –, com propósito similar.
Todavia, há que se ponderar que o sucesso da descarbonização da matriz energética está atrelado aos benefícios sociais e econômicos resultantes da solução adotada.
Além disso, é imprescindível que tal solução seja desenhada com base nas características de cada região, tanto do ponto de vista de disponibilidade da matriz energética, como da forma como o veículo e o motor serão utilizados. Em outras palavras, a operação de ônibus urbano de passageiros é totalmente diferente quando comparadas cidades como São Paulo, México, Buenos Aires e Santiago em relação a Londres, Paris, Shangai e Nova York.
Tão ou mais diferentes são as matrizes energéticas renováveis disponíveis nesses diferentes países, que pudessem servir de solução para redução de GEE – naturalmente, as soluções poderão ser distintas em distintas ocasiões.
O Brasil, como protagonista na produção e exportação de alimentos, possui “a faca e o queijo” para se tornar o maior produtor mundial de biocombustíveis, principalmente biometano.
De um lado, é pressionado a encontrar solução para o dejeto proveniente do setor, como condição sine qua non para garantir sustentabilidade em seu protagonismo; por outro, a grande disponibilidade de dejeto traz oportunidade ímpar de produção de biometano em grande escala, o que obviamente garante redução de GEE na atmosfera a partir da circularidade obtida no processo e substituição do diesel.
Nesse sentido, empresas de motores e veículos comerciais têm direcionado seus investimentos para o desenvolvimento de motores movidos a metano, na forma de gás natural, biogás e biometano comprimido, por acreditar ser esta uma solução que equilibra as questões sociais e econômicas, além de praticamente eliminar a emissão de material particulado, problema encontrado principalmente nos grandes centros urbanos, e, sobretudo, atacar na raiz as emissões de GEE a partir do aproveitamento do resíduo do agronegócio e do resíduo urbano.
Os motores de combustão a gás natural funcionam perfeitamente a biometano, uma vez que a molécula combustível é a mesma (CH4), com a diferença em sua origem: gás natural é, geralmente, disponível em poços subterrâneos (não renovável), enquanto o biometano é oriundo da biodigestão de matéria orgânica (renovável). Quando comparado com o diesel, que possui densidade energética da ordem de 46 MJ/kg, o metano apresenta 55 MJ/kg, 20% superior.
Por outro lado, em função do seu baixo número de cetano, a ignição de um motor 100% a gás ocorre através de vela de ignição em ciclo Otto. Pelo mesmo motivo, a taxa de compressão volumétrica de um motor desenvolvido originalmente para operar com gás é da ordem de 11:1 a 13:1, enquanto um motor que opera com diesel possui taxa entre 15:1 e 18:1. Essa diferença construtiva explica, muitas vezes, porque motores a diesel convertidos em gás natural acabam tendo seu desempenho reduzido para compensar um excesso de pressão de compressão, o que poderia ocasionar ignição irregular do gás (por exemplo, detonação).
Com o avanço das tecnologias de combustão e gerenciamento do sistema de injeção, do sistema de admissão de ar e monitoramento de pressões e temperaturas, um motor a gás natural ou a biometano moderno possui desempenho de torque e potência equivalente a de um motor diesel de mesmo deslocamento volumétrico, enquanto proporciona vantagens importantes, como 40-50% menor de emissão de Nox, em função de menor velocidade de chama e temperatura de combustão; praticamente inexistente emissão de PM, pela ausência de compostos aromáticos ou contaminante de enxofre; 20% menor emissão de ruído. Quando se trata de emissões de GEE, o motor a gás natural emite 20-25% menos CO2 que um motor a diesel e, quando operando em biometano, quando considerado o critério “poço à roda”, da produção do combustível até o escapamento, estima-se uma redução de 26 kgCO2eq/m³ consumido.
Além dos benefícios ambientais, o motor de combustão a gás natural pode oferecer oportunidade de redução de custo operacional da ordem de 10-15% por quilômetro rodado, já incluindo o plano de manutenção completo e o custo de combustível adequados para a operação de um caminhão médio com potência ao redor de 260cv, percorrendo em torno de 250 km/dia, considerando os valores médios de custo comercial do litro do diesel e metro cúbico do gás.
Em casos onde a empresa é produtora e autoconsumidora do biometano em sua frota, a redução do custo operacional é significativamente maior, sem considerar o benefício do crédito de carbono associado ao reaproveitamento do dejeto.
Algumas montadoras de caminhões já começam a oferecer versões “zero km” a gás. Outras empresas oferecem solução de conversão de motores diesel em gás, através da instalação de kits específicos. E, mais recentemente, surge uma solução de substituição de motor a diesel por motor novo a gás e a biometano, originalmente desenvolvido para esse combustível, com transformação do chassi e garantia do fabricante do motor.
Enfim, a disponibilidade regional de soluções é fundamental para que o uso de combustíveis alternativos, como o gás natural e o biometano renovável, seja consolidado no Brasil em prol da descarbonização social e economicamente mais adequada.