O cultivo da cana-de-açúcar talvez seja a atividade produtiva mais antiga do Brasil. Remete-nos ao princípio do século XVI, no primeiro período da colonização portuguesa, e tinha como principal objetivo produzir açúcar para atender à demanda da Europa de então. Os plantios iniciais foram realizados no litoral brasileiro, onde se instalaram dezenas de engenhos para a fabricação do açúcar, atividade que “floresceu” principalmente na Bahia e em Pernambuco, inicialmente.
Quatro séculos depois, um projeto para a produção de um biocombustível, o etanol da cana-de-açúcar, mudou para sempre a geografia da canavicultura no Brasil, interiorizando a sua exploração para as regiões Sudeste e Centro-Oeste, longe do clima tropical litorâneo. Inicialmente, nas décadas de 1970/1980, essa expansão ocorreu principalmente em São Paulo. Na década passada, tivemos um novo boom de crescimento no período de 2004/2009, quando a cultura estendeu “as suas asas” sobre Goiás, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul.
Assim, chegamos à primeira década do século XXI com a cana-de-açúcar ocupando área próxima de 10 milhões de hectares, abrangendo uma diversidade edafoclimática única quando a comparamos com a canavicultura de outras importantes regiões do mundo. Naturalmente, a plasticidade fenotípica exigida para atender a uma base ambiental tão heterogênea é obtida através do amplo esforço dos programas de melhoramento genético da cultura, que têm atuado de maneira tão dinâmica nos últimos quarenta anos.
Essas novas regiões foram assumidas pela cultura da cana-de-açúcar justamente no momento em que o processo de plantio e a colheita mecânica avançavam significativamente, tornando-se, no final de uma década, a prática predominante para essas operações.
Nesse período, a produtividade agrícola estagnou e, em alguns casos, até reduziu, colocando em xeque a sustentabilidade da atividade. O diagnóstico indicou que a produtividade agrícola (TCH – tonelada de cana por hectare), que tem grande correlação com a população de colmos, era refém de canaviais com baixa população de colmos. Uma avaliação mais apurada indicou que havia duas fontes dessa baixa população:
1) a realização de plantios com falhas, às vezes oriundos do uso de variedades de menor adaptação ao processo de plantio mecânico;
2) a “desconstrução” da população de colmos dado por fatores como (a) pisoteio no processo de colheita; (b) excessiva exposição a déficits hídricos dos canaviais nos primeiros ciclos; (c) arranquio de touceiras no processo de colheita mecânica.
No momento atual, diversos produtores se esforçam para reduzir o volume de mudas utilizadas em seus plantios. Os equipamentos de plantio recebem novos elementos que permitem uma distribuição mais precisa com adequação do volume, à disponibilidade de gemas por tonelada. O excesso de gemas, via de regra, originará um número de touceiras excessivas que competirão pelos mesmos recursos disponíveis, água, nutrientes e luz, podendo reduzir a produtividade expressa. De fato, essa situação se tornou recorrente a partir do plantio mecânico, que, na última década, assumiu a quase totalidade de áreas plantadas.
E, basicamente, houve um aumento exacerbado no uso do volume de mudas, saindo de 12 toneladas/ha no plantio manual para aproximadamente 20 toneladas/ha no plantio mecânico. O aumento de mais de 60% no volume de gemas, provavelmente, proporcionou um número muito maior de plântulas nascidas e que passaram a disputar os mesmos insumos biológicos, reduzindo, em aproximadamente, 20% a produtividade agrícola da cana planta.
A produção da cana pode ser estimada por componentes biométricos relacionados ao diâmetro e à altura dos colmos e ao número dos mesmos em uma determinada unidade área; a uma associação natural da alta produtividade com diâmetro mais grosso dos colmos.
A mecanização plena do plantio e da colheita nos leva a um outro perfil biométrico. Variedades com maior capacidade de perfilhamento, que, no final do ciclo, mantêm um número de colmos por hectare na ordem de 80 a 110 mil colmos, são sinônimos de alta produtividade agrícola e de maior longevidade dos ciclos, reduzindo significativamente o custo da tonelada de cana.
Há uma correlação negativa do número de colmos com o diâmetro dos mesmos, portanto é de se esperar que canaviais de alta população de colmos apresentem diâmetro mais fino, o que não significa, de forma alguma, uma desvantagem para o processo de produção. Se considerarmos que o número maior de colmos tem relação direta com o número de folhas, inferimos que a cobertura vegetal será maior, reduzindo a matocompetição, por exemplo. Além disso, uma maior população de colmos favorece o processo de colheita mecânica, tornando mais eficiente o sistema como um todo.
Desde 2013, passamos a usar o jargão “Rumo à produtividade dos 3 dígitos”, fazendo referência aos canaviais que apresentam produtividade agrícola média em cinco cortes, acima de 100 t/ha. Por que demos destaque à produtividade agrícola? O nosso grande desafio, principalmente na região Centro-Sul, é alcançarmos produtividades agrícolas sustentáveis em uma canavicultura de sequeiro. Isso porque, nas últimas décadas, os eventos climáticos desfavoráveis ao acúmulo de biomassa têm se tornado cada vez mais frequentes e aleatórios, reduzindo a possibilidade de previsão da produtividade, ou mesmo impossibilitando, adoção antecipada de estratégias de mitigação.
O déficit hídrico, “vilão” da produtividade agrícola, é o principal indutor da maturação da cana brasileira, e, como o mesmo está presente em praticamente todas as regiões produtoras em diferentes intensidades, a nossa cana tem, invariavelmente, bons valores de sacarose acumulado.
A produtividade dos três dígitos é construída com os seguintes passos:
1. Estabelecimento de canaviais de alta população (80–110 mil colmos), para que tenhamos produtividades de 1º corte (TCH1 - cana planta), entre 120 – 140 t/ha. Denominamos isso de “Patrimônio Biológico” (PB), a saber, o que conseguimos “construir”. Para tanto, temos que realizar bons plantios, sem ocorrência de falhas, por exemplo.
2. Reduzir a “desconstrução” desse “Patrimônio Biológico” (PB) nos ciclos seguintes, através de ações que venham mitigar: (a) o pisoteio, (b) o arranquio das touceiras no momento da colheita propriamente dito,
(c) outras operações agrícolas com riscos de impacto negativo sobre o canavial. O valor de desconstrução pode ser estimado pelo Q%, que é dado pela fórmula:
Q% = ((TCHnc+1/ TCHnc)-1)/100
onde nc = o ciclo da cultura (NC). A queda de produtividade por ciclo (Q%) deveria se situar entre 5% e 10%.
Na tabela em destaque é apresentado um exercício com produtividades agrícolas de 1º ciclo, combinadas com diferentes quedas de produtividade/ciclo. Fica evidente, que o esforço único para termos melhores produtividades no 1º ciclo não é suficiente para nos levar à produtividade dos três dígitos (Cena 2). A Cena 3 mostra que uma produtividade menor no 1º ciclo (120 t/ha), quando acompanhada de uma desconstrução menor nos ciclos que se seguem (Q% = 8), poderá redundar em uma produtividade média dos cinco primeiros cortes de três dígitos (102,3 t/ha).
Por fim, nossos canaviais, apesar de estarem inseridos em um ambiente biológico, têm que receber de quem os conduz um olhar de quantificação, utilizando-se, para isso, de indicadores biométricos da produção, para que saiamos da inferência, das preferências e possamos assumir estratégias pautadas por valores que serão traduzidos em ganhos efetivos, com a construção e a manutenção de patrimônios biológicos elevados, que nos levarão à plena sustentabilidade dessa atividade.
Tabela: Produtividade agrícola de 1º ciclo (PB = Patrimônio Biológico) combinada com quedas de produtividade (Q%) diversas, para construção da canavicultura dos três dígitos.