Coordenador do Centro de Agronegócio da FGV e Embaixador da FAO para o Ano Internacional do Cooperativismo
Op-AA-37
O setor sucroenergético vive, desde 2008, seu inferno astral. Até aquele ano, havia um importante crescimento nos investimentos em greenfields e/ou aquisições/fusões de empresas, mostrando um horizonte formidável para o País, fosse quanto à geração de empregos e renda em toda a cadeia produtiva, fosse quanto à perspectiva de exportar tecnologia, criando as condições para a comoditização do etanol.
Esse segundo aspecto ficava, a cada ano, mais visível com a chegada de grandes grupos multinacionais comprando usinas preexistentes ou montando novas, pensando em replicar o modelo além-mar. A entrada de grupos nacionais que atuavam em outros setores também era demonstração da grande expectativa a respeito da agroenergia a partir da cana. E, por fim, a vinda ao Brasil de empresas de tecnologia interessadas na alcoolquímica confirmava esses sentimentos gerais.
De repente, as coisas mudaram, e o governo brasileiro perdeu completamente o interesse pelo setor. Sem explicação alguma, entregou-o à própria sorte, sem considerar as grandes possibilidades de contribuição que o País poderia dar à mitigação do aquecimento global, transferindo sua tecnologia agroindustrial para outros países tropicais na América Latina, na África e até na Ásia, de onde é originária a extraordinária matéria-prima cana-de-açúcar.
Nem mesmo o acordo firmado com os Estados Unidos objetivando o desenvolvimento da sucroenergia na América Central e no Caribe foi estimulado, que dirá considerar a espetacular história do Proálcool, exemplo vivo de sucesso em todo o planeta como alternativa à gasolina, depois dos famigerados choques do petróleo nos anos 70 do século passado.
Tudo foi esquecido, o setor desprezado, muitas unidades industriais atingidas pela crise global em alguma fase delicada de suas histórias foram à bancarrota, e outras ainda irão. Pior, a falta de uma estratégia para a agroenergia também corroeu parte da Petrobrás, a grande empresa que foi orgulho dos brasileiros no passado. Em nome do combate à inflação, ela foi obrigada a comprar gasolina lá fora e vender aqui dentro por um preço menor.
Os prejuízos daí advindos – e que ainda persistem, todos os dias – derrubam o valor de suas ações, do seu patrimônio. O curioso é que, sendo uma empresa também pública, esses prejuízos são, em parte, pagos pelo povo brasileiro. Muito desacerto para um segmento tão estratégico quanto o de combustíveis líquidos, ainda mais para o etanol, renovável, redutor das emissões de CO2, gerador de empregos, modelo universalmente admirado.
Na dúzia de ministérios que lidam com o tema, existem técnicos supercompetentes e interessados no sucesso do modelo. Mas, sem coordenação, sem estratégia, não se entendem, e a erosão de agroenergia é flagrante. Uma pena! Mas não é a primeira vez que isso acontece. No Plano Collor, extintos o IAA e o Planalsucar, quase tivemos uma crise parecida.
Isso não aconteceu porque as lideranças empresariais e acadêmicas buscaram uma alternativa privada à intervenção estatal – velha e superada –, que foi o Consecana, modelo, hoje, ainda copiado por outras cadeias produtivas. A Câmara Setorial da Cadeia Produtiva do Açúcar e Álcool montada, em 2003, no Ministério da Agricultura, contribuiu para a retomada do setor e, mais ainda, nos anos subsequentes, com o advento do carro flex.
Responsável pela maior revolução tecnológica da segunda metade do século XX – com a introdução do pagamento de cana pelo teor da sacarose, além do Proálcool –, essa cadeia produtiva sinalizava para um futuro mais grandioso. Não se pensava apenas em crescer para exportação de álcool. A ambição era muito maior: exportar tecnologia, know-how, indústrias inteiras, variedades de cana, legislação e institucionalidade, tudo aquilo que aprendemos a duras penas em quase 40 anos de Proálcool.
Tudo isso foi jogado fora, tudo desperdiçado, perdido, por falta de visão, falta de estratégia, falta de políticas públicas. Não que as políticas públicas estejam erradas: simplesmente inexistem, ou não funcionam. Que estaria por trás disso, por que estariam prejudicando o País? Seria por preconceito contra os usineiros, vistos no passado como senhores de engenho rudes e privilegiados? Preconceito é filho da ignorância e pai da incompetência.
Mas ignorância não é doença, tem cura, basta querer se curar: e essa trágica “família” poderia desaparecer, surgindo, em seu lugar, a competência e a estratégia. Competência que teve Barbosa Lima Sobrinho quando desenhou o Estatuto da Lavoura Canavieira, há quase 70 anos. Foi ele que, com a visão do seu tempo, constituiu as bases da cadeia produtiva sucroalcooleira, duas décadas antes de Ray Goldberg definir cadeias produtivas e agribusiness em Harvard, nos Estados Unidos.
Barbosa Lima Sobrinho reconheceu a importância da presença do Estado, indispensável naquele tempo para regular o setor, tão desigual entre seus elos. Hoje, intervenção estatal não interessa a ninguém, mas regras claras são fundamentais para orientar o setor privado, em seus investimentos e decisões empresariais. E agora, o que vai acontecer?
As lideranças de usineiros e fornecedores estão se esforçando para dialogar com os diferentes setores governamentais em busca das regras essenciais. Mas talvez falte uma variável: conversa, articulação por dentro do setor. É absolutamente fundamental que os produtores rurais e industriais tenham uma posição negociada e única, traduzida em meia dúzia de medidas que conformariam a estratégia tão necessária. Não é aceitável que cada um defenda uma coisa diferente e vá ao governo com posições individuais.
Governo adora quando um setor não se entende: não tem que dar nada para ninguém e usa a divisão como argumento. E é imperioso que, dentro do governo, também se entendam os distintos Ministérios e instituições que tratam de agroenergia. E, por fim, que ambos – setor privado e público – cheguem a um consenso, a uma direção negociada e uniforme.
Trata-se apenas de entender que o Pré-sal é muito mais caro que o Pós-açúcar. E que estamos exatamente no interseguro entre o custoso Pré-sal e o barato Pós-açúcar, tempo oportuno para o renascimento desse magnífico exemplo de alternativa energética renovável. Trata-se apenas de assumir uma atitude até nacionalista, sem preconceito, sem idiossincrasias, sem ódios, sem ressentimentos. Trata-se de olhar para o futuro em que o Brasil será o grande responsável por uma geopolítica global mais justa.
Alimentos, qualquer país pode produzir; já agroenergia, só se pode produzir onde houver sol o ano todo. E sol o ano todo só existe na região tropical, onde estão os países em desenvolvimento. Esses países, ao produzir a energia necessária em todo o mundo, ganharão emprego, renda, riqueza, reequilibrando a geopolítica, tão desbalanceada hoje em dia. Será impossível isso, será esse projeto um sonho inalcançável? Claro que não. Apostar nessa impossibilidade é apostar na cegueira institucional, é apostar na prima-irmã da ignorância, a burrice completa. E isso não existe!