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Elizabeth Farina e Luciano Rodrigues

Presidente e Gerente de Economia e Estatística, respectivamente, da Unica

Op-AA-38

O papel do etanol no futuro

Desde 2003, ano do lançamento dos veículos flex-fuel no mercado brasileiro, o setor sucroenergético apresentou trajetória ascendente, antes vista apenas nos momentos de euforia do Proálcool. Após 2008, esse cenário se alterou significativamente com a crise financeira global, os problemas climáticos que atingiram as últimas safras, o aumento nos custos de produção e a política de preços para os combustíveis fósseis, entre outros aspectos. Juntos, esses ingredientes produziram uma desaceleração no crescimento e retração significativa nos investimentos para a ampliação da capacidade produtiva.

Hoje, pode-se dizer que o setor vive uma das fases mais desafiadoras ao longo dos cinco séculos de produção de cana-de-açúcar no País. De um lado, as projeções de longo prazo apontam para um potencial de demanda muito favorável. Até o final da década, os automóveis flex devem representar mais de 80% da frota de automóveis leves no Brasil, enquanto o consumo de combustíveis leves, nesse mesmo período, deve dobrar. No cenário externo, os programas de consumo de biocombustíveis se consolidam em várias regiões do planeta, expandindo o consumo global de etanol a cada ano.

A demanda pelo açúcar também não dá sinais de mudança de trajetória, com o crescimento puxado principalmente por países emergentes, onde os processos de urbanização, o aumento populacional, o ganho de renda e o acesso a produtos industrializados têm atuado como indutores de procura pelo produto. Isso sem contar as inúmeras opções para uso da cana e do etanol como matéria-prima para a fabricação de insumos para a indústria química, para a produção de bioplásticos e uma série de novos produtos e usos. Por outro lado, o setor se defronta com um enorme desafio para continuar expandindo os ganhos de eficiência e de produtividade e se manter competitivo, principalmente na sua vertente energética. É essa vertente, na qual se insere o etanol combustível, que exibe maior complexidade na atual conjuntura.

Apesar de o caso brasileiro ser um exemplo com características muito próprias, a discussão sobre segurança energética é crescente em todos os continentes e está cada vez mais integrada às estratégias político-econômicas adotadas por um número crescente de países. É constante a procura por formas alternativas de atender à demanda por energia e por novos processos, que permitam a otimização das fontes existentes visando à diversificação da matriz e à garantia de oferta a preços acessíveis.

Ao lado da segurança energética, o componente ambiental e a necessidade de combate ao aquecimento vêm ganhando notoriedade nos últimos anos, a exemplo da recente publicação do relatório sobre mudanças climáticas da ONU, exigindo também estratégias sólidas para a ampliação do uso de energias limpas.

Nessa discussão, ganha destaque a análise sobre o papel e a importância do Estado para a introdução e a indução das energias limpas e renováveis, já que praticamente todos os países que hoje dispõem do uso de biocombustíveis o fizeram com base em políticas públicas que incentivaram seu desenvolvimento. No Brasil, a consolidação do etanol

como combustível só foi possível a partir de um envolvimento muito ativo do poder público. Esse processo envolveu a introdução do Próalcool nos anos 70, a criação da mistura obrigatória de etanol na gasolina, o estímulo ao carro flex nos anos 2000 e a tributação diferenciada dos combustíveis de origem fóssil. De fato, esse é um caso clássico em que apenas o bom funcionamento dos mercados não é suficiente para incentivar os investimentos necessários para atingir o consumo e produção adequados.

Isso ocorre porque, nesse sistema, estão presentes diversas externalidades ambientais e sociais positivas associadas à produção e ao uso do combustível renovável em larga escala, que não são devidamente valoradas de forma autônoma pelo mercado. Do lado dos combustíveis fósseis que são de uso centenário, há custos ocultos associados às emissões de CO2, que não afetam custos privados de sua produção e consumo. Do lado dos combustíveis renováveis, há benefícios ocultos que não são valorados pelo consumidor e não representam benefícios privados para o produtor de forma a induzirem sua produção e consumo social e ambientalmente desejáveis.

Esse tipo de situação é bastante conhecida pelos pesquisadores de economia. Há, ainda, um segundo problema na formação de preços nesses mercados. Via de regra, o consumidor não quer pagar pelos benefícios ambientais e sociais do combustível renovável, ainda que os considere positivos, optando pelo mais barato embora seja mais poluente.

 Afinal, esse consumidor entende que sua contribuição seria muito limitada e insuficiente para alterar as condições ambientais e, se outros pagarem por esse combustível limpo, ele não poderá ser excluído dos benefícios ambientais obtidos. Temos, portanto, um comportamento ”carona”, em que é possível usufruir sem pagar pelo benefício.

Esses são exemplos típicos de falha do mercado, que exigem a atuação do Estado para serem corrigidos, pois a disposição de pagar por esses benefícios por parte do consumidor individual não inclui os impactos positivos de natureza ambiental e social. Dessa forma, o preço praticado para o combustível limpo e renovável tende a ser inferior ao que seria necessário para induzir os investimentos socialmente desejáveis. Haverá um subinvestimento em energias limpas e um superinvestimento em energias fósseis.

No Brasil, pode-se citar ainda um segundo aspecto que merece atenção: a estrutura de mercado no setor produtivo do etanol e aquela observada no caso do petróleo são completamente distintas. Do lado da bioenergia, temos um setor mais fragmentado e competitivo e, do outro, uma estrutura com a evidente presença do poder do mercado, combinado com o controle estatal. Esse cenário sugere a necessidade de um arcabouço institucional com regras mínimas, que permitam a convivência desses setores que produzem bens que podem ser considerados intercambiáveis do ponto de vista do consumo.

Assim, é fácil identificar  a necessidade de atuação do poder público nesse mercado, com a adoção de instrumentos que reconheçam as externalidades que o próprio mercado não consegue valorizar, equacionando as consequências da não rivalidade e não exclusão presentes nesse sistema.

É evidente, portanto, que a consolidação do etanol combustível na matriz energética futura deve ser precedida de um ambiente institucional com regras estáveis e previsíveis, que incorporem os aspectos inerentes às externalidades positivas do etanol e permitam um planejamento adequado de longo prazo por parte do setor produtivo.

No caso brasileiro, essa necessidade é ainda mais evidente, já que mais de 60% dos veículos em uso no País são compostos por veículos flex-fuel, e a importância da política de preços da gasolina sobre o consumo de etanol ocorre a cada abastecimento. Existe, portanto, uma relação direta e imediata entre a política de preços para o combustível derivado de petróleo e o consumo interno de etanol carburante.

Entretanto, é preciso reconhecer que medidas voltadas para a necessária correção das falhas de mercado associadas a essa fonte energética são um elemento necessário, mas, por si só, insuficiente para expandir a presença do combustível renovável na matriz energética nacional.

Paralelamente, o futuro do etanol como substituto da gasolina passa também pela busca contínua por processos e inovações tecnológicas que garantam maior competitividade para o etanol de cana-de-açúcar. Esse processo precisa permear todas as etapas da produção, desde a concepção do material genético utilizado no campo até o processamento industrial, incluindo o gerenciamento da produção, passando pela distribuição e pelas formas de consumo, com especial destaque para o essencial e contínuo aperfeiçoamento do veículo flex, especialmente em termos de eficiência no consumo do combustível.

Na maior parte das vezes, investimentos desse tipo demandam tempo para produzir os efeitos desejados e duradouros, além de envolver riscos para os agentes que os fazem. Isso faz deles um grande desafio para o setor sucroenergético, particularmente garantir que tais investimentos de tempo e capital aconteçam no ritmo necessário em um período em que a situação financeira das empresas do setor exige atenção, para dizer o mínimo.

É possível ilustrar a condição vigente com uma análise dos balanços contábeis publicados pelos principais grupos produtores, com base em estudos do Banco Itaú BBA. Essa análise mostra que a participação média da despesa financeira líquida sobre a receita das unidades produtoras brasileiras saltou de 6,4%, em 2010, para cerca de 13% , em 2012. Para 15% das indústrias, a situação é especialmente ruim: com uma despesa financeira líquida próxima de 25% do faturamento, esses grupos têm tido dificuldade até mesmo para gerar caixa e manter suas atividades.
A situação econômica das empresas, na safra 2013/14, é reveladora do momento paradoxal em que vivem os empresários. Ao mesmo tempo em que se produz uma safra recorde em termos de toneladas de cana processada, há importantes perdas em contas correntes. O preço médio, em termos nominais, é inferior ao de duas safras atrás e há pressões de custos incontornáveis decorrentes da menor ATR, geada – ainda que localizada –, dias parados em decorrência de chuvas excessivas e como consequencia, alongamento da safra.

O setor produtor tem investido na busca de otimização de seus ativos, apesar da situação econômica negativa. É essencial a manutenção dos investimentos para a renovação e a expansão dos canaviais, que somaram mais de US$ 4 bilhões apenas em 2012. Nos últimos cinco anos, outros US$ 4,5 bilhões foram investidos na compra de máquinas e implementos, para acelerar a mecanização da colheita da cana. Projetos de enorme importância para ampliar ferrovias, terminais, infraestrutura portuária estão sendo colocados em prática, isso sem contar a própria construção do etanolduto, que deve consumir cerca de US$ 3,5 bilhões até 2017.

O Centro de Tecnologia Canavieira – CTC, antes mantido por usinas associadas e fornecedores de cana, passou por profundas transformações, inclusive societárias, para atender às novas demandas e agilizar o processo de desenvolvimento de novas tecnologias. Hoje, O CTC reflete o tipo de pensamento que, necessariamente, deve permear todos os esforços do setor sucroenergético visando ao futuro.

O que se configura é um momento extremamente dinâmico e desafiador para a atividade canavieira no Brasil e no setor energético mundial, com inúmeras iniciativas e investimentos significativos voltados para o desenvolvimento de novas fontes energéticas, ou mesmo novos processos produtivos para o melhor aproveitamento das fontes existentes. No centro desses esforços, estão a redução de custos, a ampliação da oferta e a otimização da produção. São movimentações determinantes para a definição de estratégias nacionais e globais nos campos energético, político e econômico.

Nesse cenário, o Brasil exibe uma condição de destaque, seja pelo potencial evidente e comprovado para ampliar a produção de etanol, seja pelas recentes descobertas de significativas reservas de petróleo na chamada camada do pré-sal. Nos dois casos, são visíveis tanto a necessidade de investir pesadamente quanto os obstáculos tecnológicos que terão que ser superados. No caso do etanol, é fundamental um esforço conjunto de todos os envolvidos na cadeia que cerca o setor sucroenergético brasileiro, unindo os setores público e privado em um único e essencial propósito. É o que se exige para que o atual momento, que pode ser descrito como uma transição de curto prazo, seja superado de forma menos tortuosa, garantindo para o futuro a manutenção do papel de destaque que o etanol já ocupa na matriz de combustíveis do País há quase quatro décadas.