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Antonio Carlos Filgueira Galvão

Diretor do CGEE, Centro de Gestão e Estudos Estratégicos

Op-AA-20

A crise sistêmica e a oportunidade estratégica do bioetanol

Crise sistêmica é aquela em que as expectativas dos agentes econômicos são drasticamente alteradas e frustram-se as predições usuais. Com isso, revisam-se planos de investimento e negócio e desencadeiam-se tradicionais medidas de ajuste às novas condições do mercado. Nas crises agudas, de forma diferente das perturbações cíclicas menores, o epicentro do sistema é posto em xeque: o circuito monetário-financeiro, que congrega a representação simbólica dos valores e provê a liquidez necessária às transações econômicas, deixa de operar a contento.

A crise atual, guardadas suas especificidades, é comparável a de 1929, dada a dimensão das contrações e medidas anticíclicas. Para os que defendem a teoria do ciclo econômico, tais crises são típicas da metade do ciclo longo, momento em que a “exuberância irracional” dos mercados, alavancada pela finança desregulada, promove perceptível descolamento dos segmentos produtivo e monetário-financeiro. É como se a valorização financeira dos capitais ganhasse autonomia e rompesse com as limitações do mundo físico das mercadorias. Parte expressiva da riqueza parece guardar relação apenas com a componente especulativa.

Na primeira metade de um ciclo, após etapa inicial de afirmação dos benefícios de novo arsenal de inovações revolucionárias e da lenta e firme ocupação de todos os setores econômicos, o paradigma emergente provoca, noutra etapa, uma euforia nos agentes, que os impele a aceitar padrões de remuneração dos bens e serviços crescentemente desatrelados dos custos reais de produção.

O caso recente do preço do petróleo no mercado internacional é ilustrativo a respeito, quando de um patamar aproximado de US$ 25, em 2000, o barril chegou a US$ 147, em julho de 2008, e retornou para menos de US$ 50, no princípio de 2009. A crise mina justamente essa lógica de evolução da economia e esteriliza a riqueza financeira, colocando a descoberto opções de investimentos que não atendam aos melhores critérios de avaliação. Na atual crise, estima-se que mais de US$ 2 trilhões – cerca de dois PIB brasileiros – sejam dissipados no sistema econômico.

A superação da crise deverá dar lugar a uma terceira etapa de prosperidade, comportada, em que finanças e produção caminham acopladas, orientadas pela revisão dos padrões de gestão e regulação dos mercados globais. No jogo competitivo mundial e de cada nação, haverá novos ganhadores, adaptados às novas regras do comportamento econômico. Assim, a atitude de cada empresa, bloco de capital ou país, frente à crise, é determinante dos resultados alcançados.

E certos setores estão melhor posicionados que outros, para gerar os impulsos necessários à saída da crise. O setor sucroalcooleiro apresenta, hoje, inegáveis vantagens para apoiar a saída da crise global, em especial com o bioetanol de cana e seu papel potencial no redesenho da matriz energética mundial. Ao absorver volumes comparáveis de CO2 no crescimento da planta aos produzidos pela combustão do álcool, o etanol de cana contribui para minorar o efeito estufa.

E, as perspectivas de melhoria na eficiência econômica, energética e ambiental assinalam ganhos potenciais significativos, seja com o desenvolvimento de cultivares melhor adaptados a cada contexto edafoclimático, seja com o avanço da genômica e de técnicas de aproveitamento integral da planta. Como vêm demonstrando sistematicamente os esforços de pesquisa capitaneados pelo CGEE, esses desafios avultam-se diante da presença de tecnologias alternativas e de saltos tecnológicos, que possam transformar a biomassa em fonte de produção de energia.

O sistema econômico ainda está atrelado a um padrão energético do século XIX, baseado em energias fósseis. Trata-se de um anacronismo tecnológico - como o das, ainda dominantes, lâmpadas a filamento incandescente, de Edison, a ser superado pelas fontes renováveis. A possibilidade do bioetanol - e também dos demais biocombustíveis, ocupar lugar crescente na matriz energética mundial coloca o Brasil numa posição vantajosa. Nenhum país possui situação equivalente, dadas às possibilidades de incorporação de novas terras agricultáveis e à larga experiência adquirida na organização da produção e comercialização do álcool.

A escala de produção e consumo no mercado nacional adquiriu proporções invejáveis e novos rearranjos estão em contínua marcha, como na tendência recente de concentração dos grupos envolvidos na comercialização do álcool, num movimento que busca contrapor o poder de mercado das distribuidoras de combustíveis no Brasil. Mas, a crise incita uma atitude brasileira mais firme, que deve incluir, como lembram especialistas, a transformação do bioetanol numa commodity internacional.

Os obstáculos tarifários e não tarifários para a entrada de exportações brasileiras na Europa e EUA não são desprezíveis. E as opções políticas recentes desses países parecem não contribuir para acelerar essa mudança. Assim, a melhor estratégia, talvez, seja a de promoção de uma intensa articulação e cooperação com os países africanos, como potenciais produtores e exportadores de álcool.

Eles possuem capacidades inegáveis para a produção do bioetanol de cana em larga escala e poderiam se beneficiar muito de uma inserção competitiva internacional, que o mundo todo almeja há muito tempo. Em contrapartida, a África, do ponto de vista geopolítico, pode ser o elemento catalisador de uma estratégia mais ousada de promoção da expansão internacional do bioetanol, arrastando consigo a valorização de anos de esforços brasileiros no setor.