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Roberto Rodrigues

Presidente do Conselho Deliberativo da Unica

Op-AA-40

Naufrágio no seco

Entre vários outros fatores, dois são essenciais para a tomada de decisão de investimentos por parte de empreendedores privados: o preço do que irá produzir, fruto da relação entre oferta e demanda, gerando saldo positivo – o lucro, e confiança  em que essa relação terá estabilidade e duração suficientes para garantir o seu payback, isto é, regras claras.

Esses dois fatores estiveram presentes na formulação do famoso Estatuto da Lavoura Canavieira,  preparado pelo grande Barbosa Lima Sobrinho, na primeira metade do século passado, dando origem a uma poderosa indústria açucareira, competitiva e eficiente. Com a crise do petróleo, já nos anos 1970, regras precisas estabelecidas pelo Proálcool deram um novo salto positivo ao setor, transformando o Brasil no único país capaz de responder ao aumento dos preços dos derivados do petróleo. Ao mesmo tempo, o eficiente combustível gerou milhares de empregos diretos e indiretos, uma indústria de base poderosa e bem estruturada e uma energia renovável e limpa, com o etanol emitindo apenas 11% do CO2 emitido pela gasolina.

A instituição do pagamento da cana pelo Teor de Sacarose, logo depois do Proálcool, deu outro impulso ao setor, com o surgimento de uma revolucionária tecnologia agrícola e industrial, com o uso de novas variedades de cana-de-açúcar, modernos tratos culturais, máquinas e colhedeiras muito mais eficientes e, como corolário, a produção de energia elétrica a partir do bagaço da cana e até das folhas de canaviais cortados sem fogo.

Toda essa história, nem sempre tranquila (tivemos a tremenda crise no setor nos anos 1960, superada no início dos anos 1970), teve sua estabilidade lastreada no modelo de intervenção do Estado, especialmente pela ação do IAA - Instituto do Açúcar e Álcool, que a tudo regulava, e sempre sob a égide do Estatuto da Lavoura Canavieira.

 Assim, desde a quota de produção de cana por cada fornecedor (note-se que o agricultor de cana tinha esse tratamento, e não o de plantador) até as de produção dos diferentes tipos de açúcar e o estabelecimento dos preços de cada produto, tudo era regulado pelo IAA. Outros tempos. Com a extinção do IAA pelo governo Collor, em março de 1990, essa gigantesca corrente de produção, criada no Brasil antes de o conceito de agribusiness ser plantado por Ray Goldberg, em Harvard, em 1957, ficou um tanto perplexa. De repente, as regras de intervenção perderam seu efeito, e a lógica empresarial foi totalmente perturbada: e agora?

Mas a dupla essencial para investir – preços e expectativa (confiança no futuro) – persistiu, e, com a criação do Consecana, agricultores e industriais encontraram uma nova fórmula para sua própria remuneração, inteiramente privada e sem intervenção do governo. Foi uma bela saída, uma autodeclaração de maturidade: da estreita dependência de regras oficiais para a plena competição global.

Na virada para o século XXI, nessa nova fase sem intervenção, surgiu o carro flex, dando outro empurrão à produção de etanol.
Bons ventos agitaram o mercado com o entusiasmo do então Presidente da República, Lula da Silva, que entendeu ser a agroenergia, sob a liderança brasileira, uma possível mudança positiva da geopolítica global: poderíamos "ensinar" o mundo tropical menos desenvolvido e com crescente população e renda per capita a gerar energia renovável, na nova civilização de biomassa.

E saímos a vender a ideia pelos quatro cantos, o que atraiu para o Brasil as atenções das grandes multinacionais do agronegócio, que aqui vieram comprar usinas prontas, montar greenfields, certamente com a expectativa (de novo ela) de que, motivados pelo exemplo brasileiro, os países tropicais se tornassem grandes produtores de energia renovável a ser consumida no mundo todo.

E, na primeira década do século XXI, o crescimento do setor foi espetacular: 10% ao ano. De repente, 2008 amanhece com uma crise financeira global terrível.

Stop!!! Fim dos investimentos, parada total. Nos últimos 5 anos, só um greenfield, assim mesmo porque já estava tudo pronto. Mais de 40 usinas fecharam, e, neste ano, outras 12 ou 13 vão para o mesmo caminho, várias em recuperação judicial. A indústria de base está estrangulada, tendo perdido 50.000 empregos diretos nesse período. Endividadas pelos investimentos contratados do começo da década, ainda havia a esperança na recuperação do setor. Mas não deu certo, e, embora haja quem atribua ao Pré-sal a responsabilidade pelo descalabro brutal, essa não é toda a verdade.

O novo governo se desinteressou pela agroenergia por motivos desconhecidos. Desconfia-se de que haja preconceito contra a agroindústria, má vontade governamental para com seus representantes, mas o fato terrível é que a decantada civilização da biomassa foi deserdada pelo atual governo. Há razões de ordem econômica por ele apontadas, e uma delas é a inflação, terror a ser eliminado pelo controle do preço da gasolina.

Esse procedimento está matando, simultaneamente, a Petrobras (e o governo é responsável por isso) e a promissora indústria de agroenergia. Em nome do combate à inflação, retirou-se a Cide da gasolina, submetendo o etanol a outra perda de competitividade: a cana é agricultura, e seus custos sobem com mão de obra, insumos, máquinas. Como álcool não pode custar mais do que 70% da gasolina nas bombas de combustíveis, ficou difícil competir.

Claro que inflação é um fantasma inaceitável. Claro que intervenção não cabe mais. Mas apoio sim: o papel do Estado é garantir condições para o investidor cumprir o seu: produzir. E, num ano de eleições, em que as ações oficiais só buscam uma coisa – o voto –, é pouco provável que o Governo Federal resolva salvar a Petrobras e a agroenergia.

Se tivesse coragem – e terá que fazê-lo mais cedo ou mais tarde –, praticando um  preço interno da gasolina, equilibrando com os preços internacionais e resgatando a Cide da gasolina, já se reacenderia a chama das expectativas, e o setor avançaria de novo. Mas, agora, o estrago já é grande, e, ao lado de uma clara definição oficial de qual é o papel da agroenergia na matriz energética brasileira, será necessário um amplo programa de saneamento financeiro do setor.

Também é imperioso igualar o ICMS do etanol nos estados, fator de desequilíbrio desnecessário. E outros temas são relevantes:
• a indústria automobilística deve "investir" em motor para etanol e não apenas adaptar o da gasolina. Um carro flex (com etanol, gasolina e eletricidade) seria bem-vindo;
• aperfeiçoamento do Consecana, para que o equilíbrio entre produtor de cana e usineiro seja restaurado sem intervenção governamental;
• estímulo à cogeração de eletricidade;
• reforço da indústria de base;
• estabelecimento de pagamento por serviços ambientais, dada a redução de emissão de CO2;
• investimentos vigorosos em tecnologia, desde a transgenia da cana até a segunda geração de etanol e a alcoolquímica, sempre buscando redução de custos;
• certificação da produção final;
• exportar a tecnologia, desde a agrícola até o carro flex, passando pela  indústria, para todo o mundo tropical: só assim o etanol será “commoditizado”.

Enfim, falta resgatar a dupla citada no primeiro parágrafo deste artigo. E, sem um diálogo positivo entre governo e privados, veremos naufragar, num verde mar de cana, um dos mais promissores programas mundiais de energia. Não pode haver tanta má vontade do lado do governo, isso não é sequer democrático.